Ao pensar em ilhas especiais, a
Berlenga Grande, do Arquipélago das Berlengas, foi a primeira que me veio à
mente. Porquê? Desde logo porque a sua singularidade começa no próprio nome que, integrando a palavra grande, não tem mais do que 788 mil metros quadrados
de área e 4
quilómetros de costa; porque são notáveis as suas
invulgares escalas do tempo e da presença do Homem; porque levei muitos anos a
decidir-me visitá-la e; pelo muito que, de interessante, me foi dado ver
durante a minha visita.
Refiro a invulgar escala do tempo das
Berlengas dado que os estudos geológicos que nelas se têm desenvolvido –
associados às suas rochas graníticas rosadas, cuja estrutura é indicativa de
arrefecimento lento de magmas a grandes profundidades – sugerem que a sua
origem data do período Paleozóico, o que significa poder ter sido, pelo menos,
há 280 milhões de anos atrás. Trata-se da época em que, segundo a Teoria da
Deriva dos Continentes, colidiram duas das grandes massas continentais então
existentes na Terra, a Laurásia, a Norte, e a Gondwana, a Sul, para dar origem
ao super-continente Pangea.
Fig. 2 – O Planeta Terra como é imaginado há cerca de 170 milhões de anos
Segundo esta teoria, a origem das Berlengas remonta à época da formação da Pangea, época muitíssimo anterior à da formação das ilhas que integram os Arquipélagos dos Açores, da Madeira e das Canárias, que tiveram a sua origem em consequência da fragmentação da Pangeia e da simultânea formação do Oceano Atlântico. Daí, a escala do tempo da “nossa pequena Berlenga Grande” ser realmente outra!
Quanto à presença do Homem nas Berlengas, em
consequência da sua tão remota origem, considera-se possível que os homens primitivos
nela tenham podido caçar. Isto porque se sabe que, naqueles tempos, a
plataforma continental Ibérica ultrapassava a zona das Berlengas, sendo estas,
zonas montanhosas na época. Entretanto, com as sucessivas alterações climáticas
e as glaciações, as águas do mar terão ido ganhando terreno sobre a plataforma
continental Ibérica, fazendo com que, nos nossos dias, as Berlengas estejam
reduzidas ao pequeno Arquipélago que conhecemos.
Fig. 3 – Arquipélago das Berlengas
Confesso que, tendo-me deslocado com alguma frequência a Peniche, cidade da costa portuguesa situada a pouco mais de dez quilómetros do Arquipélago das Berlengas - que além da Berlenga Grande e seus recifes, inclui dois grupos de ilhéus, o das Estelas e o dos Farilhões-Forcadas -, pensei numerosas vezes em visitar as Berlengas. Contudo, olhava o mar de Peniche no Outono e no Inverno e…nem pensar!
Voltava a fazê-lo na Primavera, e pensava que ainda
era cedo. Chegado o Verão, ouvia as descrições dos enjoos sofridos por muitos
que se iam aventurando a ir, voltava a olhar aquele “marzão” e a pequena dimensão
dos barcos que ali estavam prontos a partir e… desistia!
Foi pois necessário ouvir numerosas descrições de como a Ilha é bonita e ler uma brochura do ICN (o então Instituto de Conservação da Natureza) – que, para além de bastante interessante informação sobre a Ilha, referia que, pelas suas singulares características, a Ilha é não só Reserva Natural como também Reserva Biogenética do Conselho da Europa - para me decidir a enfrentar aquele mar e visitar a Berlenga Grande.
Concluí então que um simples enjoo, por mais “enjoo”
que fosse, não podia impedir uma mulher habituada a viajar pelo mundo, de
visitar a “grande” ilha do arquipélago que possui o mais antigo estatuto de
protecção integral da Natureza de que há memória. Tal protecção, segundo o ICN, terá já sido reafirmada pelo rei D.
Afonso V de Portugal, em carta régia datada de 15 de Novembro de 1465.
Assim, num belo dia de Verão de 2005, em que o mar
estava bastante calmo, lá fui, com o meu marido, ao Porto de Peniche, apanhar o
primeiro barco para as Berlengas. Mas pensa o Leitor que fui num barco
qualquer? Não. Escolhi o maior dos pequenos barcos que, naquele dia, se
preparavam para fazer a travessia!
Quando cerca de meia hora após a
partida comecei a avistar a Ilha, acabei por verificar que, ainda que naquele
“marzão” e num tão pequeno barco, a viagem não havia sido muito mais difícil do
que as inúmeras travessias do Tejo que eu havia feito, diariamente, durante
décadas, a caminho de casa para o emprego e vice-versa. Afinal, nem sequer
enjoei!
Quase a chegar à Ilha, conforme
recomendavam os folhetos, reforcei o protector solar que havia posto ainda em
Peniche, e procurei aproveitar ao máximo tão esperada visita. Pouco depois já
avistava uma pequena praia, a do Mosteiro, que, segundo vim a concluir, é uma
das poucas dignas do nome de praia, na Berlenga Grande. Não obstante a sua
pequenez, esta praia revelou-se de uma beleza surpreendente, pelo magnífico
contraste de luzes e sombras então existente naquele recanto rochoso, cuja água
transparente apresentava tal colorido - indo do verde-esmeralda luminoso ao azul profundo - como eu nunca havia visto, nem voltei a ver fora da
Berlenga.
Fig. 7 – Fantásticas cores do Mar das Berlengas
Também jamais esquecerei a excepcional variedade de cores, que, àquela hora da manhã, me foi dado observar ao longo do canal entre altas arribas que, de repente, surgiu à esquerda do barco e que deduzi ser, pelas minhas anteriores leituras, o “Caminho da Inês”.
Também jamais esquecerei a excepcional variedade de cores, que, àquela hora da manhã, me foi dado observar ao longo do canal entre altas arribas que, de repente, surgiu à esquerda do barco e que deduzi ser, pelas minhas anteriores leituras, o “Caminho da Inês”.
Fig. 8 –
Chegada à Praia do Mosteiro e entrada do Caminho da Inês
Já fora
do barco, olhando para a direita, onde se situava o ancoradouro, avistei uma
encosta com um conjunto de pequenas casas, no socalco abaixo das quais se viam
algumas um pouco maiores, que me pareceram restaurantes. Esta hipótese veio a
ser confirmada quando, ao começar a subir a encosta relativamente íngreme,
passei por um deles, o Pavilhão Mar e Sol. Ali, o meu marido aproveitou para
encomendar uma caldeirada de peixe para o nosso almoço, que pretendíamos tomar
algumas horas depois, quando voltássemos da caminhada que iríamos fazer de
seguida.
À medida que fomos subindo pelo trilho da encosta, sempre à direita da praia, fui-me familiarizando com os ruídos de fundo da ilha que, naquela época, eram dois: o do mar marulhando incessantemente lá em baixo, e o dos milhares de gaivotas, muitas delas não parando de “protestar” contra a presença dos visitantes. Isto, apesar do número destes dever ser limitado, diariamente, a cerca de 350 no total. Contudo, parece que tal número só é “tentativamente” controlado pela lotação dos barcos com licença de transporte de passageiros para a Ilha.
À medida que fomos subindo pelo trilho da encosta, sempre à direita da praia, fui-me familiarizando com os ruídos de fundo da ilha que, naquela época, eram dois: o do mar marulhando incessantemente lá em baixo, e o dos milhares de gaivotas, muitas delas não parando de “protestar” contra a presença dos visitantes. Isto, apesar do número destes dever ser limitado, diariamente, a cerca de 350 no total. Contudo, parece que tal número só é “tentativamente” controlado pela lotação dos barcos com licença de transporte de passageiros para a Ilha.
Mais
adiante deparámos à nossa esquerda com um pequeno parque de campismo, com as
suas tendas dispostas em vários socalcos, talhados para esse fim no restrito espaço
existente na encosta sobranceira à Praia do Mosteiro.
b)
Fig. 9 – Vistas do Parque de campismo: a) de lado direito e b) do lado oposto ao mar
Fig. 9 – Vistas do Parque de campismo: a) de lado direito e b) do lado oposto ao mar
Esta é assim chamada por ter sido junto a ela que, no século XVI, mais precisamente em 1513, foi construída a primeira grande edificação da Ilha, o Mosteiro da Misericórdia, para os monges da Ordem de S. Jerónimo fazerem retiro. Contudo, tendo verificado, durante os anos que ali tentaram viver em paz, que o local era mais propício a ataques e pilhagens do que ao retiro religioso, os monges acabaram por abandoná-lo cerca de 35 anos depois. Dele só restam agora algumas pedras, no local onde actualmente se ergue o Restaurante Mar e Sol.
Continuando a subir, então já por pequenos trilhos secundários, traçados num vasto campo coberto de chorões, já poucos em flor devido à época do ano, tornou-se evidente a grande capacidade de adaptação desta planta às condições climáticas da Ilha. Soubemos depois que tal facto, não obstante a beleza que na Primavera os chorões emprestam à Ilha, começa a preocupar os monitores ambientais porque, como uma verdadeira infestante, pode vir a condenar outras espécies autóctones muito mais raras, e algumas delas únicas no Globo.
Fig. 10 – Campo de chorões da Berlenga
De entre as espécies de flora mais típicas das Berlengas salientam-se a Arméria berlengensis, a Umbilicus rupestris, a Lobulária marítima, o Echium rosulatum, a Pulicária, a Anagallis monelli, a Silene e a Frankenia laekis.
Continuando a subir, então já por pequenos trilhos secundários, traçados num vasto campo coberto de chorões, já poucos em flor devido à época do ano, tornou-se evidente a grande capacidade de adaptação desta planta às condições climáticas da Ilha. Soubemos depois que tal facto, não obstante a beleza que na Primavera os chorões emprestam à Ilha, começa a preocupar os monitores ambientais porque, como uma verdadeira infestante, pode vir a condenar outras espécies autóctones muito mais raras, e algumas delas únicas no Globo.
Fig. 10 – Campo de chorões da Berlenga
De entre as espécies de flora mais típicas das Berlengas salientam-se a Arméria berlengensis, a Umbilicus rupestris, a Lobulária marítima, o Echium rosulatum, a Pulicária, a Anagallis monelli, a Silene e a Frankenia laekis.
Fig. 11 – Algumas das espécies da flora da Ilha
Já bem no final da “escalada”, sempre com o cuidado de caminhar pelos trilhos indicados, e de não pisar
Fig. 12 –Aviso para não sair dos trilhos
as numerosas mas inofensivos répteis que por ali se viam - as lagartixas do Bocage, os lagartos e outros animais terrestres, que ficaram nas Berlengas aquando da submersão pelas águas do mar da extremidades da plataforma Ibérica – foi-me possível avistar, na costa Norte, alguns corvos marinhos. Estes sobrevoavam a língua de mar que avança pela garganta ali talhada nas rochas pela erosão, que é uma clara consequência das sucessivas invernías que fustigam o norte da Ilha.
Esta garganta é chamada de Carreiro dos Cações, sendo exactamente a extremidade Sul deste carreiro, com entrada do mar pelo lado Norte da Berlenga Grande, que parece estar a aproximar-se perigosamente da extremidade Norte do Carreiro do Mosteiro - onde se situa a Praia do mesmo nome – podendo, com a continuada erosão marítima, vir no futuro a separar a Ilha em duas.
Fig. 13 – Carreiro dos Cações
Se tal vier a acontecer, cerca do terço Leste da área da Ilha, que actualmente é designado por Ilha Velha, ficará separado dos outros cerca de dois terços da Ilha, grande parte dos quais constituem hoje a Reserva Natural Integral da Berlenga.
Fig. 14 – Mapa da Ilha, com a zona da Reserva Natural Integral assinalada a verde, e diversos aspectos das águas da Ilha
.
Por sua vez, olhando para o lado esquerdo, deparei com um excelente panorama da ilha, culminado pelo farol do Duque de Bragança, foi edificado em 1841 no ponto mais alto da Ilha, a cerca de 85 metros do nível médio da água do mar.
Seguindo
o trilho, continuei a contornar, por cima, a Praia e o Carreiro do Mosteiro e,
um pouco mais próximo das arribas do lado Sul da Ilha, foi-me dado desfrutar
uma magnífica vista, quer sobre o Caminho da Inês, quer sobre a Flandres, nome
dado à pequena enseada que se lhe segue.
Voltando ao trilho e já junto ao farol, ao olhar à minha esquerda deparei com uma vista verdadeiramente magnífica, tendo como fundo o azul do Atlântico. Dali, tive a noção clara da pequena dimensão da Ilha - tem cerca de um quilómetro e meio na sua maior extensão - podendo ainda constatar quanto a Berlenga Grande constitui um verdadeiro paraíso para numerosas aves. Fosse qual fosse a direcção para onde olhasse, só via, a perder de vista, inúmeras aves, embora com clara predominância de gaivotas pairando e piando, ou tomando conta das suas crias. Muitas destas últimas ainda se encontravam nos ninhos, que haviam sido construídos pelas suas progenitoras de forma aconchegante, nas numerosas irregularidades do solo.
Voltando ao trilho e já junto ao farol, ao olhar à minha esquerda deparei com uma vista verdadeiramente magnífica, tendo como fundo o azul do Atlântico. Dali, tive a noção clara da pequena dimensão da Ilha - tem cerca de um quilómetro e meio na sua maior extensão - podendo ainda constatar quanto a Berlenga Grande constitui um verdadeiro paraíso para numerosas aves. Fosse qual fosse a direcção para onde olhasse, só via, a perder de vista, inúmeras aves, embora com clara predominância de gaivotas pairando e piando, ou tomando conta das suas crias. Muitas destas últimas ainda se encontravam nos ninhos, que haviam sido construídos pelas suas progenitoras de forma aconchegante, nas numerosas irregularidades do solo.
A partir
daquele momento, não obstante o meu olhar atento sobre vários pormenores
daquela magnífica paisagem, a minha atenção teve de passar a ser partilhada com
outro objectivo, de todo para mim importante: as gaivotas! Primeiro, porque
como coleccionadora de gaivotas – manufacturadas em diversos materiais - nunca
me cansei de as observar. Segundo, e muito mais importante, pela agressividade
que elas tinham para com os visitantes, quando estes, distraídos, punham um pé
fora dos trilhos! E não é que tinham razão? Ainda que sem o saberem, aquelas
inúmeras gaivotas são as guardiãs naturais da grande parte da Ilha da Berlenga
Grande, que está vedada aos turistas e constitui a verdadeira Reserva Natural
da Ilha. A esta só têm acesso, os investigadores e os alunos com que trabalham
a bem da Humanidade e do conhecimento mais profundo da sua origem.
Ora,
todas aquelas gaivotas, que constituem uma das populações nidificantes estáveis
das Berlengas, se encontravam na época da minha visita em plena nidificação.
Por isso, ao verem-nos sair dos trilhos obrigatórios, sentindo os seus ninhos
ameaçados, avançavam para nós de asas abertas, aos “gritos” e de bicos abertos,
obrigando-nos a retomar o “bom caminho”. O que nos apressámos a fazer sem
hesitação, para fugir às suas certamente dolorosas bicadas. Como a mãe Natureza
é sábia!
Pensei
então que toda aquela agressividade das gaivotas se verificava mesmo não
sabendo elas que eu tinha um exemplar da espécie, embalsamado, na sala da minha
Quinta da Gaivota, em Vila
Franca de Xira. Imagine o Leitor se soubessem! Faço contudo
questão de esclarecer que baptizei assim a Quinta por adorar observar o planar
das gaivotas em pleno céu azul, bem como gostar da agradável sensação de
liberdade que tal imagem me faz sentir. Por isso, um sobrinho meu, pediu a um
colega biólogo, que trabalha com as gaivotas das Berlengas, para embalsamar um
dos exemplares jovens que tivesse sido usado nas suas investigações, para assim,
fazendo-me surpresa, mo poder oferecer para símbolo da Quinta.
Além das
gaivotas-argenteas-de-patas-amarelas (Larus
cachinnans) e das gaivotas-de-asa-escura (Larus fuscus), o ecossistema da Berlenga inclui também como
importantes espécies os corvos-marinhos-de-crista ou galhetas (Phalacrocorax aristotelis), as pardelas
de bico amarelo (Calonectris diomedea)
e os airos (Uria aalge). Inclui
ainda, segundo o ICN, o falcão peregrino (Falco
peregrinus), a coruja-do-nabal (Asio
flammeus), o andorinhão preto (Apus
apus), a andorinha-dos-beirais (Delichon
urbica), o peneireiro vulgar (Falco
tinnunculus), o rabirruivo preto (Phoenicurus
ochruros) e o picanço-de-barrete-vermelho (Lanius senator).
De entre as razões que me haviam levado à Berlenga
Grande, a única que saiu gorada foi exactamente a minha expectativa de ver os
airos das Berlengas. O meu interesse prendia-se com o facto de saber que se
trata de aves com “casaca”, as quais têm um voo rápido e nidificam em colónias
nas escarpas isoladas, tal como os originais pinguins oriundos do Oceano
Árctico. Provenientes do Norte, as Berlengas constituem a latitude mais Meridional
a que os airos se deslocam, para nidificar, entre Janeiro e Julho.
Fig. 17 –
Aspectos do pinguim original do Árctico a), do airo b) e da sua nidificação nas
escarpas isoladas das Berlengas
Contudo,
ainda que não tivesse conseguido ver nenhum airo durante a visita, pude mais
tarde verificar, por imagens documentais, que os “airos que nidificam nas
Berlengas”, ainda que pertencendo à mesma família de aves, possuem um bico
bastante mais afilado do que os originais pinguins do Árctico.
Infelizmente,
tem-se vindo a assistir, nos últimos anos, a um decréscimo cada vez maior do
número de airos que vem nidificar nas Berlengas. Entre as possíveis causas de
tal redução, salientam-se as alterações climáticas, a progressiva exaustão de
recursos piscícolas na plataforma continental europeia, a poluição do oceano
por hidrocarbonetos, e a pressão exercida por outras espécies, entre as quais
se salientam as gaivotas e o próprio Homem. E o pior é que, à medida que a
dimensão das colónias de airos se reduz, decrescem também as suas
probabilidades de defesa, e consequente subsistência. Por isso, parece estar a
aproximar-se o dia em que o belo airo das Berlengas só poderá continuar a ser
visto no símbolo da Reserva Natural das mesmas. Ou será que, com o andar dos
tempos…nem aí?
Continuando
a caminhada pelo trilho principal, algum tempo depois de passar as cisternas
quase rasteiras que ali se encontram para recolha de água das chuvas, avistei
a pequena enseada conhecida pela Cova do Sono, cuja água se revelou tão
transparente e maravilhosamente colorida como as das outras enseadas da Ilha.
Decidi então voltar para trás, pois a hora de almoço se aproximava a passos largos,
não sem pensar que a visita por mar à Cova do Sono, permitiria atravessar a Ilha
de um lado para o outro, através do Furado Grande, o que, dali, nem se podia
vislumbrar.
Já no regresso, fazendo um desvio à direita do
trilho principal, tomei um trilho secundário ali existente e, de repente, lá
bem no fundo, edificado sobre uma plataforma rochosa entrando pelo mar dentro e
ligada a terra por uma estreita faixa de rocha, deparei com o soberbo Forte de
S. João Baptista, de cuja história já ouvira falar.
Fig. 18 – Forte de S. João Baptista
Só não estranhei a razão da edificação do Forte naquele local, tão estrategicamente definido, por saber de há muito que todo o lugar por onde passe o “bicho Homem” é susceptível de ser cobiçado, e, mais ainda, usado como plataforma, para, a partir dele, poder atacar mais adiante. Ora, localizando-se as Berlengas num ponto de passagem dos navegadores do Atlântico, esta Ilha, que à primeira vista parece um mundo desolador de rocha de granito rosa, foi há muito local de “abrigo” para numerosas gentes antigas que por ali passavam, sendo já na posse de Portugal, frequentemente assediada por piratas de várias origens.
Dos
diferentes espólios encontrados na Berlenga Grande, se conclui que, entre
outros, por ela terão passado romanos, vikings, ingleses e árabes. Contudo, a
primeira grande edificação de que há memória na Ilha, parece ter sido a do já referido Mosteiro da Misericórdia.
Fig. 19 – Outras vistas do Forte de S. João Baptista e da sua praia
A
segunda grande edificação da Ilha, o Forte de S. João Baptista, foi mandado
erigir no reinado de D. João IV, com o objectivo da defesa territorial
portuguesa. Devido à sua posição estratégica, o Forte foi palco de numerosas
batalhas ao longo dos anos, vindo a cair nas mãos dos castelhanos em 1666. Por
tal razão, não sendo suficientemente “forte” para poder resistir aos seus
frequentes assédios, acabou por ser abandonado, como ponto de defesa, em 1847.
Após uma
adequada restauração e adaptação, este Forte serve actualmente de abrigo a
todos aqueles que se candidatem, atempadamente, no Turismo de Peniche, a nele
pernoitar. Conta com cerca de duas dezenas de quartos, serviço de bar
e um mini-mercado. A complementar tão interessante lugar de retiro, podem os
visitantes aproveitar o seu tempo não só para percorrer tranquilamente, por
terra, esta tão linda Ilha, como descer à pequena praia lateral ao Forte,
designada por Praia do Forte e, aí, aproveitar para nadar, passear de barco ao
longo da costa e visitar as maravilhosas grutas da mesma, ou ainda, praticar
mergulho.
Segundo
as descrições que tenho lido, as actividades de mergulho são realmente
tentadoras nas Berlengas, cujos mil hectares de mar guardam segredos de
milénios - incluindo naufrágios, batalhas navais e…até sereias - além de um ecossistema
único no Globo. Nele, fora dos pesqueiros devidamente autorizados, é proibida a
captura de quaisquer espécies marinhas.
Retornando
ao trilho principal, e não podendo avançar para a enorme área da ilha mantida
como Reserva Natural Integral, que está limitada entre este trilho, a Praia da
Cova do Sono e o Carreiro dos Cações, apressei-me a descer em direcção ao
Restaurante Sol e Mar, onde iria almoçar. Contudo, como as “pressas dão em
vagares”, quando ainda me encontrava na zona cimeira do Parque de Campismo,
tive o meu “grande desgosto” da visita!
Fig. 20 –
Vista da encosta do Bairro dos Pescadores e dos restaurantes
Não
tendo vindo adequadamente calçada para percorrer aquele caminho, ali rochoso e
escorregadio, após um passo mais apressado…Zás! Descolou-se o lado direito da
tira superior da chinela de plástico e sola prensada, que levava no pé direito.
E lá tive de acabar por descer todo o caminho até ao restaurante, umas vezes
com o pé descalço, outras ao pé-coxinho e apoiada no ombro do meu marido!
Já após
um excelente almoço típico de peixe fresquíssimo - para o qual a chinela
rebentada não fez qualquer diferença -, o caso mudou completamente de figura ao
querer subir ao Bairro dos Pescadores e ao monte sobranceiro a este, situado do
lado direito da Praia do Mosteiro, mais precisamente, na frente do Caminho da
Inês. Não sendo fácil fazê-lo descalça, havia que arranjar uma alternativa
viável!
Eis senão quando, logo à entrada do Bairro,
até onde subi descalça por ali não haver picos no chão, encontrei a mulher de
um pescador que, na frente da sua porta, lavava tranquilamente uma camisa de
pescador. Após adequado cumprimento, perguntei-lhe delicadamente se por acaso
não tinha uma agulha grande e guita com que eu pudesse “remendar” a chinela e,
assim, poder acabar a visita. Respondeu-me que esperasse um pouco, entrou em
casa e volveu pouco depois com uma agulha de cozer redes e fio de “nylon”. Para
minha total surpresa, quando lhe estendi as mãos para pegar naqueles tão
almejados utensílios, ela olhou-as, e fitando-me nos olhos, argumentou:
- Com
essas mãos tão delicadas? Nem pensar nisso! A “menina” deixe-me cá ver a
chinela, que eu trato disso! Tanto mais que, para além de ter as mãos mais
habituadas ao trabalho do que as suas, já começo a ter prática nesta tarefa. É
rara a semana que me não aparecem turistas com este tipo de problema!
Na
realidade, fura daqui, ponto dali - ainda que, pontualmente, com a minha ajuda,
para fixar melhor a tira da chinela - a verdade é que em cerca de cinco minutos
fiquei em condições de calçá-la! De seguida, ao pretender recompensar
monetariamente tão prestável serviço, aquela “artesã”, voltando a olhar-me nos
olhos, retorquiu usando uma expressão que me pareceu muito sua:
- Nem
pensar nisso! Vamos combinar uma coisa! Se um dia me vir com um problema que a
“menina” possa ajudar-me a resolver, eu agradeço que então me ajude. Está
certo?
Guardando bem fundo a lição de vida que tão sabiamente me acabava de ser “ministrada”, agradeci mais uma vez àquela simpática Senhora - que vim mais tarde a saber, se chama Mariete, e que, sendo nora de um dos mais tradicionais pescadores da Ilha, e mulher de outro, vive praticamente todo o ano na Berlenga Grande, só se deslocando ao Continente por ocasião das várias festividades do ano – a quem logo ali decidi oferecer um exemplar do Livro que então preparava, e no qual registei a sua lição, para boa memória de alguns vindouros. E foi assim que, depois de um muito sincero par de beijos, lá continuei a minha visita ao Bairro dos Pescadores, que tem apenas duas ruas: a do Pirotas e a do José Caldinhos. De seguida, subi o monte por detrás do Bairro e, lá mesmo do topo, pude apreciar mais duas inolvidáveis paisagens: à direita, uma bela vista do Caminho da Inês e da Praia do Mosteiro e, à esquerda, uma magnífica vista da parte oriental da Ilha.
Voltei depois a descer toda a encosta, para então,
sim, terminada a “grande caminhada” e a digestão do almoço, usufruir um pouco
do ambiente da Praia do Mosteiro, antes da partida do barco para Peniche. Não
dispondo já de tempo suficiente para tomar banho e secar-me, optei por me
sentar num “banco” da rocha, ali existente sob uma gruta, também “apinhada” de
gente, tal como a praia àquela hora, e passar em revista a principais
singularidades da Berlenga Grande.
De tudo o que havia visto na Ilha, não me foi possível deixar de salientar o maravilhoso colorido das águas do mar da Berlenga, quando sobre elas incide o radioso sol de Portugal. Também são dignas de excelente nota as suas diferentes espécies de fauna e flora, só possíveis graças às influências climáticas simultâneas, do Atlântico, a Norte, e do Mediterrâneo, a Sul. Também a antiguidade do isolamento da ilha, e as características intrínsecas do seu solo rochoso, tornam as suas plantas diferentes das suas congéneres do continente. Algumas delas têm na Berlenga um desenvolvimento especial, devido à quantidade significativa de excrementos de aves nela existente, como é o caso do malmequer amarelo e da papoila (Papaver comniferum).
De tudo o que havia visto na Ilha, não me foi possível deixar de salientar o maravilhoso colorido das águas do mar da Berlenga, quando sobre elas incide o radioso sol de Portugal. Também são dignas de excelente nota as suas diferentes espécies de fauna e flora, só possíveis graças às influências climáticas simultâneas, do Atlântico, a Norte, e do Mediterrâneo, a Sul. Também a antiguidade do isolamento da ilha, e as características intrínsecas do seu solo rochoso, tornam as suas plantas diferentes das suas congéneres do continente. Algumas delas têm na Berlenga um desenvolvimento especial, devido à quantidade significativa de excrementos de aves nela existente, como é o caso do malmequer amarelo e da papoila (Papaver comniferum).
Sobre a
fauna da Berlenga, achei interessante saber que, para além dos répteis, como o
lagarto comum ou sardão e as lagartixas do Bocage, e dos roedores como os
coelhos bravos (Oryctolagus cuniculus),
que chegam mesmo a originar pragas, constitui na Berlenga uma verdadeira
relíquia faunística o rato-preto (Rattus
rattus). Esta só é possível devido à inexistência de ratazanas dos esgotos
na Ilha, as quais, no Continente, dizimam aqueles ratos. Mesmo assim, a
continuação desta espécie, segundo o Instituto de Conservação da Natureza, só
tem sido assegurada na Berlenga pelo facto de estes ratos nela terem o cuidado de cuidar zelosamente das suas crias.
b) à tarde
Fig. 21 – Vistas da Praia do Mosteiro
a) de manhã
Fig. 21 – Vistas da Praia do Mosteiro
Ainda segundo
a mesma fonte, também a riqueza biológica das águas do mar da Berlenga - devido
à conjugação da existência, a algumas milhas de distância, de um vale submarino
(o Canhão da Nazaré ), cuja profundidade chega em alguns pontos a atingir
quatro quilómetros, e no qual se geram turbilhões que originam correntes
ascendentes carregadas de nutrientes, e da confluência simultânea das águas
Atlânticas e Mediterrânicas nas suas costas -
permite o desenvolvimento de uma grande variedade de espécies marinhas,
algumas delas muito raras.
Sendo as
características das Berlengas tão especiais, que para ela atraem espécies de
aves como a pardela ou, muito especialmente, o airo, são também as águas do seu
mar as principais responsáveis pela presença dos pescadores na Ilha, desde
tempos remotos. Os pescadores, que durante séculos se abrigaram em grutas naturais,
contam hoje com o seu próprio bairro na encosta esquerda da Ilha Velha, mais
especificamente, na orla direita do Carreiro do Mosteiro.
E porque
“os últimos são os primeiros”, considero que a maior singularidade da Berlenga
Grande, ao manter-se Reserva Natural, consiste em poder ser preservada - se a
ganância do turismo e o excesso do número de gaivotas não destruírem tudo - até
que os conhecimentos e equipamentos científicos sejam capazes de esclarecer completamente
o complexo sistema geodinâmico da Ilha. E, quando tal acontecer, o Homem ficará
a conhecer um pouco mais sobre as origens da Terra e, consequentemente, sobre
as suas próprias origens.
Mas… para que tal possa vir a
acontecer, parece indispensável que as autoridades competentes regulamentem
rápida e adequadamente, o acesso às Berlengas. De outro modo, a natural “ânsia
do lucro rápido e fácil” de alguns, poderá destruir sem retorno a “galinha dos
ovos de ouro”, que, no caso das Berlengas, deveria realmente ser de ouro…mas
para a Humanidade.
Entretanto, não resisto à tentação de
contar ao Leitor, como este texto, constituindo um sub-capítulo do Volume 1 do meu Álbum de Viagens intitulado "Divirta-se a Viajar Comigo", teve um papel decisivo na
selecção da Editora do dito. Foi assim.
Fig. 22 – Álbum de Viagens "Divirta-se a Viajar Comigo"
Regressando em Março de 2006 de férias na República Dominicana, fazia com o meu marido, escala num aeroporto de Paris. Eu escrevia, e ele apreciava e revia este sub-capítulo. Eis senão quando, o senhor que estava sentado a seu lado lhe disse: - Desculpe, pois não é bonito olhar para o que os vizinhos lêem. Mas eu não pude deixar de ver as imagens do texto que está lendo! Por acaso não são de Peniche e das Berlengas? Coloco-lhe a questão porque eu sou o Presidente da Câmara de Peniche e essas imagens parecem-me muito familiares.
Fig. 22 – Álbum de Viagens "Divirta-se a Viajar Comigo"
Regressando em Março de 2006 de férias na República Dominicana, fazia com o meu marido, escala num aeroporto de Paris. Eu escrevia, e ele apreciava e revia este sub-capítulo. Eis senão quando, o senhor que estava sentado a seu lado lhe disse: - Desculpe, pois não é bonito olhar para o que os vizinhos lêem. Mas eu não pude deixar de ver as imagens do texto que está lendo! Por acaso não são de Peniche e das Berlengas? Coloco-lhe a questão porque eu sou o Presidente da Câmara de Peniche e essas imagens parecem-me muito familiares.
Entabulámos
desde logo um interessante diálogo que, alguns minutos depois, me permitiu
pedir ajuda ao nosso interlocutor, para conseguir algumas boas fotos que
pudessem substituir, com vantagem, as que já tinha para ilustrar o texto.
Alguns contactos posteriores com ele, conduziram-me a um dos autores de um
excelente livro que havia sido publicado sobre as Berlengas. Por sua vez este,
não só me facultou algumas das fotos pretendidas – que vieram a ser excelentemente
complementadas por outro colega do ICN - como me falou com entusiasmo da
Editora do seu livro que, por acaso é quase minha vizinha. Daí, a que o meu
primeiro contacto para editar o Álbum fosse a mesma Editora, foi só um passo.
Mas, na verdade, quando me dirigi às suas instalações, estava convencida que
iria ser apenas a minha primeira tentativa, e que várias outras se lhe
seguiriam, até conseguir o meu intento. Surpreendentemente, tal como eu havia
chegado até ela, quis também o destino que os seus especialistas se tivessem
interessado, desde o primeiro momento pelo projecto apresentado, e que,
consequentemente, o meu Álbum de Viagens tenha sido editado, precisamente, pela minha
vizinha Intermezzo, actualmente Medialand. A vida tem destas coisas!