quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

BERLENGAS











BERLENGAS

 / BERLENGA GRANDE 


     Ao pensar em ilhas especiais, a Berlenga Grande, do Arquipélago das Berlengas, foi a primeira que me veio à mente. Porquê? Desde logo porque a sua singularidade começa no próprio nome que, integrando a palavra grande, não tem mais do que 788 mil metros quadrados de área e 4 quilómetros de costa; porque são notáveis as suas invulgares escalas do tempo e da presença do Homem; porque levei muitos anos a decidir-me visitá-la e; pelo muito que, de interessante, me foi dado ver durante a minha visita.

         Refiro a invulgar escala do tempo das Berlengas dado que os estudos geológicos que nelas se têm desenvolvido – associados às suas rochas graníticas rosadas, cuja estrutura é indicativa de arrefecimento lento de magmas a grandes profundidades – sugerem que a sua origem data do período Paleozóico, o que significa poder ter sido, pelo menos, há 280 milhões de anos atrás. Trata-se da época em que, segundo a Teoria da Deriva dos Continentes, colidiram duas das grandes massas continentais então existentes na Terra, a Laurásia, a Norte, e a Gondwana, a Sul, para dar origem ao super-continente Pangea. 

  Fig. 1 – O Planeta Terra como é imaginado há cerca de 340 milhões de anos 



Fig. 2 – O Planeta Terra como é imaginado há cerca de 170 milhões de anos

Segundo esta teoria, a origem das Berlengas remonta à época da formação da Pangea, época muitíssimo anterior à da formação das ilhas que integram os Arquipélagos dos Açores, da Madeira e das Canárias, que tiveram a sua origem em consequência da fragmentação da Pangeia e da simultânea formação do Oceano Atlântico. Daí, a escala do tempo da “nossa pequena Berlenga Grande” ser realmente outra!

Quanto à presença do Homem nas Berlengas, em consequência da sua tão remota origem, considera-se possível que os homens primitivos nela tenham podido caçar. Isto porque se sabe que, naqueles tempos, a plataforma continental Ibérica ultrapassava a zona das Berlengas, sendo estas, zonas montanhosas na época. Entretanto, com as sucessivas alterações climáticas e as glaciações, as águas do mar terão ido ganhando terreno sobre a plataforma continental Ibérica, fazendo com que, nos nossos dias, as Berlengas estejam reduzidas ao pequeno Arquipélago que conhecemos. 


Fig. 3 – Arquipélago das Berlengas             
        
 Confesso que, tendo-me deslocado com alguma frequência a Peniche, cidade da costa portuguesa situada a pouco mais de dez quilómetros do Arquipélago das Berlengas - que além da Berlenga Grande e seus recifes, inclui dois grupos de ilhéus, o das Estelas e o dos Farilhões-Forcadas -, pensei numerosas vezes em visitar as Berlengas. Contudo, olhava o mar de Peniche no Outono e no Inverno e…nem pensar! 



                               Fig. 4 – Aspectos do mar de Peniche no Inverno

Voltava a fazê-lo na Primavera, e pensava que ainda era cedo. Chegado o Verão, ouvia as descrições dos enjoos sofridos por muitos que se iam aventurando a ir, voltava a olhar aquele “marzão” e a pequena dimensão dos barcos que ali estavam prontos a partir e… desistia!

                                            
                                          Fig. 5 – Zona do Cabo Carvoeiro

       Foi pois necessário ouvir numerosas descrições de como a Ilha é bonita e ler uma brochura do ICN (o então Instituto de Conservação da Natureza) – que, para além de bastante interessante informação sobre a Ilha, referia que, pelas suas singulares características, a Ilha é não só Reserva Natural como também Reserva Biogenética do Conselho da Europa - para me decidir a enfrentar aquele mar e visitar a Berlenga Grande. 
                                    
        Concluí então que um simples enjoo, por mais “enjoo” que fosse, não podia impedir uma mulher habituada a viajar pelo mundo, de visitar a “grande” ilha do arquipélago que possui o mais antigo estatuto de protecção integral da Natureza de que há memória. Tal protecção, segundo o ICN, terá já sido reafirmada pelo rei D. Afonso V de Portugal, em carta régia datada de 15 de Novembro de 1465.

Assim, num belo dia de Verão de 2005, em que o mar estava bastante calmo, lá fui, com o meu marido, ao Porto de Peniche, apanhar o primeiro barco para as Berlengas. Mas pensa o Leitor que fui num barco qualquer? Não. Escolhi o maior dos pequenos barcos que, naquele dia, se preparavam para fazer a travessia!


                          Fig. 6 – Avistando já a Berlenga Grande

         Quando cerca de meia hora após a partida comecei a avistar a Ilha, acabei por verificar que, ainda que naquele “marzão” e num tão pequeno barco, a viagem não havia sido muito mais difícil do que as inúmeras travessias do Tejo que eu havia feito, diariamente, durante décadas, a caminho de casa para o emprego e vice-versa. Afinal, nem sequer enjoei!

         Quase a chegar à Ilha, conforme recomendavam os folhetos, reforcei o protector solar que havia posto ainda em Peniche, e procurei aproveitar ao máximo tão esperada visita. Pouco depois já avistava uma pequena praia, a do Mosteiro, que, segundo vim a concluir, é uma das poucas dignas do nome de praia, na Berlenga Grande. Não obstante a sua pequenez, esta praia revelou-se de uma beleza surpreendente, pelo magnífico contraste de luzes e sombras então existente naquele recanto rochoso, cuja água transparente apresentava tal colorido - indo do verde-esmeralda luminoso ao azul profundo - como eu nunca havia visto, nem voltei a ver fora da Berlenga.

                           


                       Fig. 7 – Fantásticas cores do Mar das Berlengas

Também jamais esquecerei a excepcional variedade de cores, que, àquela hora da manhã, me foi dado observar ao longo do canal entre altas arribas que, de repente, surgiu à esquerda do barco e que deduzi ser, pelas minhas anteriores leituras, o “Caminho da Inês”.

                                                                                                      
Fig. 8 – Chegada à Praia do Mosteiro e entrada do Caminho da Inês

         Já fora do barco, olhando para a direita, onde se situava o ancoradouro, avistei uma encosta com um conjunto de pequenas casas, no socalco abaixo das quais se viam algumas um pouco maiores, que me pareceram restaurantes. Esta hipótese veio a ser confirmada quando, ao começar a subir a encosta relativamente íngreme, passei por um deles, o Pavilhão Mar e Sol. Ali, o meu marido aproveitou para encomendar uma caldeirada de peixe para o nosso almoço, que pretendíamos tomar algumas horas depois, quando voltássemos da caminhada que iríamos fazer de seguida.

         À medida que fomos subindo pelo trilho da encosta, sempre à direita da praia, fui-me familiarizando com os ruídos de fundo da ilha que, naquela época, eram dois: o do mar marulhando incessantemente lá em baixo, e o dos milhares de gaivotas, muitas delas não parando de “protestar” contra a presença dos visitantes. Isto, apesar do número destes dever ser limitado, diariamente, a cerca de 350 no total. Contudo, parece que tal número só é “tentativamente” controlado pela lotação dos barcos com licença de transporte de passageiros para a Ilha.

         Mais adiante deparámos à nossa esquerda com um pequeno parque de campismo, com as suas tendas dispostas em vários socalcos, talhados para esse fim no restrito espaço existente na encosta sobranceira à Praia do Mosteiro

 a)
                                                                  b)
Fig. 9 – Vistas do Parque de campismo: a) de lado direito e b) do lado oposto ao mar

         Esta é assim chamada por ter sido junto a ela que, no século XVI, mais precisamente em 1513, foi construída a primeira grande edificação da Ilha, o Mosteiro da Misericórdia, para os monges da Ordem de S. Jerónimo fazerem retiro. Contudo, tendo verificado, durante os anos que ali tentaram viver em paz, que o local era mais propício a ataques e pilhagens do que ao retiro religioso, os monges acabaram por abandoná-lo cerca de 35 anos depois. Dele só restam agora algumas pedras, no local onde actualmente se ergue o Restaurante Mar e Sol.

    Continuando a subir, então já por pequenos trilhos secundários, traçados num vasto campo coberto de chorões, já poucos em flor devido à época do ano, tornou-se evidente a grande capacidade de adaptação desta planta às condições climáticas da Ilha. Soubemos depois que tal facto, não obstante a beleza que na Primavera os chorões emprestam à Ilha, começa a preocupar os monitores ambientais porque, como uma verdadeira infestante, pode vir a condenar outras espécies autóctones muito mais raras, e algumas delas únicas no Globo. 



                                   Fig. 10 – Campo de chorões da Berlenga


De entre as espécies de flora mais típicas das Berlengas salientam-se a Arméria berlengensis, a Umbilicus rupestris, a Lobulária marítima, o Echium rosulatum, a Pulicária, a Anagallis monelli, a Silene e a Frankenia laekis.




Fig. 11 – Algumas das espécies da flora da Ilha

         
      




Já bem no final da “escalada”, sempre com o cuidado de caminhar pelos trilhos indicados, e de não pisar

                                     Fig. 12 –Aviso para não sair dos trilhos

 as numerosas mas inofensivos répteis que por ali se viam - as lagartixas do Bocage, os lagartos e outros animais terrestres, que ficaram nas Berlengas aquando da submersão pelas águas do mar da extremidades da plataforma Ibérica –  foi-me possível avistar, na costa Norte, alguns corvos marinhos. Estes sobrevoavam a língua de mar que avança pela garganta ali talhada nas rochas pela erosão, que é uma clara consequência das sucessivas invernías que fustigam o norte da Ilha.  
                                 
    Esta garganta é chamada de Carreiro dos Cações, sendo exactamente a extremidade Sul deste carreiro, com entrada do mar pelo lado Norte da Berlenga Grande, que parece estar a aproximar-se perigosamente da extremidade Norte do Carreiro do Mosteiro - onde se situa a Praia do mesmo nome – podendo, com a continuada erosão marítima, vir no futuro a separar a Ilha em duas.

                                            
                                           Fig. 13 – Carreiro dos Cações

Se tal vier a acontecer, cerca do terço Leste da área da Ilha, que actualmente é designado por Ilha Velha, ficará separado dos outros cerca de dois terços da Ilha, grande parte dos quais constituem hoje a Reserva Natural Integral da Berlenga.

Fig. 14 – Mapa da Ilha, com a zona da Reserva Natural Integral assinalada a verde, e diversos aspectos das águas da Ilha

       



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Por sua vez, olhando para o lado esquerdo, deparei com um excelente panorama da ilha, culminado pelo farol do Duque de Bragança, foi edificado em 1841 no ponto mais alto da Ilha, a cerca de 85 metros do nível médio da água do mar.


Fig. 15 – Farol e gaivotas

      Seguindo o trilho, continuei a contornar, por cima, a Praia e o Carreiro do Mosteiro e, um pouco mais próximo das arribas do lado Sul da Ilha, foi-me dado desfrutar uma magnífica vista, quer sobre o Caminho da Inês, quer sobre a Flandres, nome dado à pequena enseada que se lhe segue. 

   Voltando ao trilho e já junto ao farol, ao olhar à minha esquerda deparei com uma vista verdadeiramente magnífica, tendo como fundo o azul do Atlântico. Dali, tive a noção clara da pequena dimensão da Ilha - tem cerca de um quilómetro e meio na sua maior extensão - podendo ainda constatar quanto a Berlenga Grande constitui um verdadeiro paraíso para numerosas aves. Fosse qual fosse a direcção para onde olhasse, só via, a perder de vista, inúmeras aves, embora com clara predominância de gaivotas pairando e piando, ou tomando conta das suas crias. Muitas destas últimas ainda se encontravam nos ninhos, que haviam sido construídos pelas suas progenitoras de forma aconchegante, nas numerosas irregularidades do solo.


Fig. 16 – Vista geral da Berlenga Grande


         A partir daquele momento, não obstante o meu olhar atento sobre vários pormenores daquela magnífica paisagem, a minha atenção teve de passar a ser partilhada com outro objectivo, de todo para mim importante: as gaivotas! Primeiro, porque como coleccionadora de gaivotas – manufacturadas em diversos materiais - nunca me cansei de as observar. Segundo, e muito mais importante, pela agressividade que elas tinham para com os visitantes, quando estes, distraídos, punham um pé fora dos trilhos! E não é que tinham razão? Ainda que sem o saberem, aquelas inúmeras gaivotas são as guardiãs naturais da grande parte da Ilha da Berlenga Grande, que está vedada aos turistas e constitui a verdadeira Reserva Natural da Ilha. A esta só têm acesso, os investigadores e os alunos com que trabalham a bem da Humanidade e do conhecimento mais profundo da sua origem.

         Ora, todas aquelas gaivotas, que constituem uma das populações nidificantes estáveis das Berlengas, se encontravam na época da minha visita em plena nidificação. Por isso, ao verem-nos sair dos trilhos obrigatórios, sentindo os seus ninhos ameaçados, avançavam para nós de asas abertas, aos “gritos” e de bicos abertos, obrigando-nos a retomar o “bom caminho”. O que nos apressámos a fazer sem hesitação, para fugir às suas certamente dolorosas bicadas. Como a mãe Natureza é sábia!

         Pensei então que toda aquela agressividade das gaivotas se verificava mesmo não sabendo elas que eu tinha um exemplar da espécie, embalsamado, na sala da minha Quinta da Gaivota, em Vila Franca de Xira. Imagine o Leitor se soubessem! Faço contudo questão de esclarecer que baptizei assim a Quinta por adorar observar o planar das gaivotas em pleno céu azul, bem como gostar da agradável sensação de liberdade que tal imagem me faz sentir. Por isso, um sobrinho meu, pediu a um colega biólogo, que trabalha com as gaivotas das Berlengas, para embalsamar um dos exemplares jovens que tivesse sido usado nas suas investigações, para assim, fazendo-me surpresa, mo poder oferecer para símbolo da Quinta.

         Além das gaivotas-argenteas-de-patas-amarelas (Larus cachinnans) e das gaivotas-de-asa-escura (Larus fuscus), o ecossistema da Berlenga inclui também como importantes espécies os corvos-marinhos-de-crista ou galhetas (Phalacrocorax aristotelis), as pardelas de bico amarelo (Calonectris diomedea) e os airos (Uria aalge). Inclui ainda, segundo o ICN, o falcão peregrino (Falco peregrinus), a coruja-do-nabal (Asio flammeus), o andorinhão preto (Apus apus), a andorinha-dos-beirais (Delichon urbica), o peneireiro vulgar (Falco tinnunculus), o rabirruivo preto (Phoenicurus ochruros) e o picanço-de-barrete-vermelho (Lanius senator).

De entre as razões que me haviam levado à Berlenga Grande, a única que saiu gorada foi exactamente a minha expectativa de ver os airos das Berlengas. O meu interesse prendia-se com o facto de saber que se trata de aves com “casaca”, as quais têm um voo rápido e nidificam em colónias nas escarpas isoladas, tal como os originais pinguins oriundos do Oceano Árctico. Provenientes do Norte, as Berlengas constituem a latitude mais Meridional a que os airos se deslocam, para nidificar, entre Janeiro e Julho.                                     


                                             a)
                                             b)
Fig. 17 – Aspectos do pinguim original do Árctico a), do airo b) e da sua nidificação nas escarpas isoladas das Berlengas

        Contudo, ainda que não tivesse conseguido ver nenhum airo durante a visita, pude mais tarde verificar, por imagens documentais, que os “airos que nidificam nas Berlengas”, ainda que pertencendo à mesma família de aves, possuem um bico bastante mais afilado do que os originais pinguins do Árctico.

         Infelizmente, tem-se vindo a assistir, nos últimos anos, a um decréscimo cada vez maior do número de airos que vem nidificar nas Berlengas. Entre as possíveis causas de tal redução, salientam-se as alterações climáticas, a progressiva exaustão de recursos piscícolas na plataforma continental europeia, a poluição do oceano por hidrocarbonetos, e a pressão exercida por outras espécies, entre as quais se salientam as gaivotas e o próprio Homem. E o pior é que, à medida que a dimensão das colónias de airos se reduz, decrescem também as suas probabilidades de defesa, e consequente subsistência. Por isso, parece estar a aproximar-se o dia em que o belo airo das Berlengas só poderá continuar a ser visto no símbolo da Reserva Natural das mesmas. Ou será que, com o andar dos tempos…nem aí?

         Continuando a caminhada pelo trilho principal, algum tempo depois de passar as cisternas quase rasteiras que ali se encontram para recolha de água das chuvas, avistei a pequena enseada conhecida pela Cova do Sono, cuja água se revelou tão transparente e maravilhosamente colorida como as das outras enseadas da Ilha. Decidi então voltar para trás, pois a hora de almoço se aproximava a passos largos, não sem pensar que a visita por mar à Cova do Sono, permitiria atravessar a Ilha de um lado para o outro, através do Furado Grande, o que, dali, nem se podia vislumbrar.

          Já no regresso, fazendo um desvio à direita do trilho principal, tomei um trilho secundário ali existente e, de repente, lá bem no fundo, edificado sobre uma plataforma rochosa entrando pelo mar dentro e ligada a terra por uma estreita faixa de rocha, deparei com o soberbo Forte de S. João Baptista, de cuja história já ouvira falar.


                                Fig. 18 – Forte de S. João Baptista 

         Só não estranhei a razão da edificação do Forte naquele local, tão estrategicamente definido, por saber de há muito que todo o lugar por onde passe o “bicho Homem” é susceptível de ser cobiçado, e, mais ainda, usado como plataforma, para, a partir dele, poder atacar mais adiante. Ora, localizando-se as Berlengas num ponto de passagem dos navegadores do Atlântico, esta Ilha, que à primeira vista parece um mundo desolador de rocha de granito rosa, foi há muito local de “abrigo” para numerosas gentes antigas que por ali passavam, sendo já na posse de Portugal, frequentemente assediada por piratas de várias origens.

       Dos diferentes espólios encontrados na Berlenga Grande, se conclui que, entre outros, por ela terão passado romanos, vikings, ingleses e árabes. Contudo, a primeira grande edificação de que há memória na Ilha, parece ter sido a do já referido Mosteiro da Misericórdia.

                            

Fig. 19 – Outras vistas do Forte de S. João Baptista e da sua praia

         A segunda grande edificação da Ilha, o Forte de S. João Baptista, foi mandado erigir no reinado de D. João IV, com o objectivo da defesa territorial portuguesa. Devido à sua posição estratégica, o Forte foi palco de numerosas batalhas ao longo dos anos, vindo a cair nas mãos dos castelhanos em 1666. Por tal razão, não sendo suficientemente “forte” para poder resistir aos seus frequentes assédios, acabou por ser abandonado, como ponto de defesa, em 1847.

         Após uma adequada restauração e adaptação, este Forte serve actualmente de abrigo a todos aqueles que se candidatem, atempadamente, no Turismo de Peniche, a nele pernoitar. Conta com cerca de duas dezenas de quartos, serviço de bar e um mini-mercado. A complementar tão interessante lugar de retiro, podem os visitantes aproveitar o seu tempo não só para percorrer tranquilamente, por terra, esta tão linda Ilha, como descer à pequena praia lateral ao Forte, designada por Praia do Forte e, aí, aproveitar para nadar, passear de barco ao longo da costa e visitar as maravilhosas grutas da mesma, ou ainda, praticar mergulho.

         Segundo as descrições que tenho lido, as actividades de mergulho são realmente tentadoras nas Berlengas, cujos mil hectares de mar guardam segredos de milénios - incluindo naufrágios, batalhas navais e…até sereias - além de um ecossistema único no Globo. Nele, fora dos pesqueiros devidamente autorizados, é proibida a captura de quaisquer espécies marinhas.

         Retornando ao trilho principal, e não podendo avançar para a enorme área da ilha mantida como Reserva Natural Integral, que está limitada entre este trilho, a Praia da Cova do Sono e o Carreiro dos Cações, apressei-me a descer em direcção ao Restaurante Sol e Mar, onde iria almoçar. Contudo, como as “pressas dão em vagares”, quando ainda me encontrava na zona cimeira do Parque de Campismo, tive o meu “grande desgosto” da visita!


Fig. 20 – Vista da encosta do Bairro dos Pescadores e dos restaurantes

        Não tendo vindo adequadamente calçada para percorrer aquele caminho, ali rochoso e escorregadio, após um passo mais apressado…Zás! Descolou-se o lado direito da tira superior da chinela de plástico e sola prensada, que levava no pé direito. E lá tive de acabar por descer todo o caminho até ao restaurante, umas vezes com o pé descalço, outras ao pé-coxinho e apoiada no ombro do meu marido!

    Já após um excelente almoço típico de peixe fresquíssimo - para o qual a chinela rebentada não fez qualquer diferença -, o caso mudou completamente de figura ao querer subir ao Bairro dos Pescadores e ao monte sobranceiro a este, situado do lado direito da Praia do Mosteiro, mais precisamente, na frente do Caminho da Inês. Não sendo fácil fazê-lo descalça, havia que arranjar uma alternativa viável!

          Eis senão quando, logo à entrada do Bairro, até onde subi descalça por ali não haver picos no chão, encontrei a mulher de um pescador que, na frente da sua porta, lavava tranquilamente uma camisa de pescador. Após adequado cumprimento, perguntei-lhe delicadamente se por acaso não tinha uma agulha grande e guita com que eu pudesse “remendar” a chinela e, assim, poder acabar a visita. Respondeu-me que esperasse um pouco, entrou em casa e volveu pouco depois com uma agulha de cozer redes e fio de “nylon”. Para minha total surpresa, quando lhe estendi as mãos para pegar naqueles tão almejados utensílios, ela olhou-as, e fitando-me nos olhos, argumentou:
         - Com essas mãos tão delicadas? Nem pensar nisso! A “menina” deixe-me cá ver a chinela, que eu trato disso! Tanto mais que, para além de ter as mãos mais habituadas ao trabalho do que as suas, já começo a ter prática nesta tarefa. É rara a semana que me não aparecem turistas com este tipo de problema!

         Na realidade, fura daqui, ponto dali - ainda que, pontualmente, com a minha ajuda, para fixar melhor a tira da chinela - a verdade é que em cerca de cinco minutos fiquei em condições de calçá-la! De seguida, ao pretender recompensar monetariamente tão prestável serviço, aquela “artesã”, voltando a olhar-me nos olhos, retorquiu usando uma expressão que me pareceu muito sua:
         - Nem pensar nisso! Vamos combinar uma coisa! Se um dia me vir com um problema que a “menina” possa ajudar-me a resolver, eu agradeço que então me ajude. Está certo?

















































Guardando bem fundo a lição de vida que tão sabiamente me acabava de ser “ministrada”, agradeci mais uma vez àquela simpática Senhora - que vim mais tarde a saber, se chama Mariete, e que, sendo nora de um dos mais tradicionais pescadores da Ilha, e mulher de outro, vive praticamente todo o ano na Berlenga Grande, só se deslocando ao Continente por ocasião das várias festividades do ano – a quem logo ali decidi oferecer um exemplar do Livro que então preparava, e no qual registei a sua lição, para boa memória de alguns vindouros. E foi assim que, depois de um muito sincero par de beijos, lá continuei a minha visita ao Bairro dos Pescadores, que tem apenas duas ruas: a do Pirotas e a do José Caldinhos. De seguida, subi o monte por detrás do Bairro e, lá mesmo do topo, pude apreciar mais duas inolvidáveis paisagens: à direita, uma bela vista do Caminho da Inês e da Praia do Mosteiro e, à esquerda, uma magnífica vista da parte oriental da Ilha.

Voltei depois a descer toda a encosta, para então, sim, terminada a “grande caminhada” e a digestão do almoço, usufruir um pouco do ambiente da Praia do Mosteiro, antes da partida do barco para Peniche. Não dispondo já de tempo suficiente para tomar banho e secar-me, optei por me sentar num “banco” da rocha, ali existente sob uma gruta, também “apinhada” de gente, tal como a praia àquela hora, e passar em revista a principais singularidades da Berlenga Grande. 

         De tudo o que havia visto na Ilha, não me foi possível deixar de salientar o maravilhoso colorido das águas do mar da Berlenga, quando sobre elas incide o radioso sol de Portugal. Também são dignas de excelente nota as suas diferentes espécies de fauna e flora, só possíveis graças às influências climáticas simultâneas, do Atlântico, a Norte, e do Mediterrâneo, a Sul. Também a antiguidade do isolamento da ilha, e as características intrínsecas do seu solo rochoso, tornam as suas plantas diferentes das suas congéneres do continente. Algumas delas têm na Berlenga um desenvolvimento especial, devido à quantidade significativa de excrementos de aves nela existente, como é o caso do malmequer amarelo e da papoila (Papaver comniferum).

         Sobre a fauna da Berlenga, achei interessante saber que, para além dos répteis, como o lagarto comum ou sardão e as lagartixas do Bocage, e dos roedores como os coelhos bravos (Oryctolagus cuniculus), que chegam mesmo a originar pragas, constitui na Berlenga uma verdadeira relíquia faunística o rato-preto (Rattus rattus). Esta só é possível devido à inexistência de ratazanas dos esgotos na Ilha, as quais, no Continente, dizimam aqueles ratos. Mesmo assim, a continuação desta espécie, segundo o Instituto de Conservação da Natureza, só tem sido assegurada na Berlenga pelo facto de estes ratos nela terem o cuidado de cuidar zelosamente das suas crias.

a)  de manhã 

                                               b)  à tarde
                            Fig. 21 – Vistas da Praia do Mosteiro
        
         Ainda segundo a mesma fonte, também a riqueza biológica das águas do mar da Berlenga - devido à conjugação da existência, a algumas milhas de distância, de um vale submarino (o Canhão da Nazaré ), cuja profundidade chega em alguns pontos a atingir quatro quilómetros, e no qual se geram turbilhões que originam correntes ascendentes carregadas de nutrientes, e da confluência simultânea das águas Atlânticas e Mediterrânicas nas suas costas -  permite o desenvolvimento de uma grande variedade de espécies marinhas, algumas delas muito raras.

         Sendo as características das Berlengas tão especiais, que para ela atraem espécies de aves como a pardela ou, muito especialmente, o airo, são também as águas do seu mar as principais responsáveis pela presença dos pescadores na Ilha, desde tempos remotos. Os pescadores, que durante séculos se abrigaram em grutas naturais, contam hoje com o seu próprio bairro na encosta esquerda da Ilha Velha, mais especificamente, na orla direita do Carreiro do Mosteiro.

         E porque “os últimos são os primeiros”, considero que a maior singularidade da Berlenga Grande, ao manter-se Reserva Natural, consiste em poder ser preservada - se a ganância do turismo e o excesso do número de gaivotas não destruírem tudo - até que os conhecimentos e equipamentos científicos sejam capazes de esclarecer completamente o complexo sistema geodinâmico da Ilha. E, quando tal acontecer, o Homem ficará a conhecer um pouco mais sobre as origens da Terra e, consequentemente, sobre as suas próprias origens.

     Mas… para que tal possa vir a acontecer, parece indispensável que as autoridades competentes regulamentem rápida e adequadamente, o acesso às Berlengas. De outro modo, a natural “ânsia do lucro rápido e fácil” de alguns, poderá destruir sem retorno a “galinha dos ovos de ouro”, que, no caso das Berlengas, deveria realmente ser de ouro…mas para a Humanidade.

         Entretanto, não resisto à tentação de contar ao Leitor, como este texto, constituindo um sub-capítulo do Volume 1 do meu Álbum de Viagens intitulado "Divirta-se a Viajar Comigo", teve um papel decisivo na selecção da Editora do dito. Foi assim.

   Fig. 22 – Álbum de Viagens "Divirta-se a Viajar Comigo"

      Regressando em Março de 2006 de férias na República Dominicana, fazia com o meu marido, escala num aeroporto de Paris. Eu escrevia, e ele apreciava e revia este sub-capítulo. Eis senão quando, o senhor que estava sentado a seu lado lhe disse: - Desculpe, pois não é bonito olhar para o que os vizinhos lêem. Mas eu não pude deixar de ver as imagens do texto que está lendo! Por acaso não são de Peniche e das Berlengas? Coloco-lhe a questão porque eu sou o Presidente da Câmara de Peniche e essas imagens parecem-me muito familiares.


Entabulámos desde logo um interessante diálogo que, alguns minutos depois, me permitiu pedir ajuda ao nosso interlocutor, para conseguir algumas boas fotos que pudessem substituir, com vantagem, as que já tinha para ilustrar o texto. Alguns contactos posteriores com ele, conduziram-me a um dos autores de um excelente livro que havia sido publicado sobre as Berlengas. Por sua vez este, não só me facultou algumas das fotos pretendidas – que vieram a ser excelentemente complementadas por outro colega do ICN - como me falou com entusiasmo da Editora do seu livro que, por acaso é quase minha vizinha. Daí, a que o meu primeiro contacto para editar o Álbum fosse a mesma Editora, foi só um passo. Mas, na verdade, quando me dirigi às suas instalações, estava convencida que iria ser apenas a minha primeira tentativa, e que várias outras se lhe seguiriam, até conseguir o meu intento. Surpreendentemente, tal como eu havia chegado até ela, quis também o destino que os seus especialistas se tivessem interessado, desde o primeiro momento pelo projecto apresentado, e que, consequentemente, o meu Álbum de Viagens tenha sido editado, precisamente, pela minha vizinha Intermezzo, actualmente Medialand. A vida tem destas coisas!