sexta-feira, 4 de março de 2016

S. MIGUEL / AÇORES






AÇORES

 ILHA DE S. MIGUEL 

         
        Tratando de Ilhas singulares, não posso deixar de falar da Ilha de S. Miguel, a maior das 9 ilhas do Arquipélago dos Açores, que, segundo a canção, “são ilhas de bruma...onde as gaivotas beijam a terra”. Não obstante os seus apenas 750 quilómetros quadrados de área, distribuídos segundo um eixo maior de 81 quilómetros e uma largura máxima de 15,5 quilómetros, nela é possível encontrar, a par de uma simplicidade sofisticada, um caos incrivelmente ordenado. Situando-se a uma latitude muito próxima da de Lisboa, com valor médio da ordem dos 37,5 º Norte, e toda compreendida nos 25º Oeste de longitude (entre 25º 8’ e 25º 52’), esta Ilha é uma verdadeira escola da actividade sísmica da Terra fazendo parte da história do próprio Oceano Atlântico.

Fig. 1 – Localização de S. Miguel no Arquipélago dos Açores

      Ainda que no livro de banda desenhada das aventuras de Black e Mortimer, intitulado “O Enigma da Atlântida”, a Ilha de S. Miguel seja referida como uma das portas de saída da Atlântida, a sua origem já saiu há muitos anos das brumas míticas da Atlântida por se ter encontrado para ela uma justificação bastante mais credível. De acordo com os conhecimentos actuais, com a fragmentação do super continente Pangea há quase 200 milhões de anos, não só se separaram os actuais Continentes, Africano, Europeu e Americano, como se criou, entre eles, o Oceano Atlântico.

 Em consequência deste fantástico super processo de transformação do Planeta Terra, também a placa tectónica que, no interior dela, envolve as lavas aí existentes se fragmentou, originando distintas placas separadas por longas fracturas ou falhas. Muitos milhões de anos atrás o extravasamento de lavas do interior da Terra através dessas fissuras, seguido da ascensão e solidificação daquelas lavas, originou uma cordilheira de montanhas submarinas no seio do Atlântico, que, actualmente, se conhece por Dorsal Atlântica.

Ora, encontrando-se a zona onde actualmente existem as Ilhas de S. Miguel e da Terceira sobre uma grande falha, que vai da dorsal atlântica até ao Estreito de Gibraltar e separa as placas europeia e africana, a mesma ficou também naturalmente sujeita à ascensão de lavas com posterior solidificação (afloramento).

Ainda de acordo com o conhecimento actual, considera-se que o afloramento do primeiro complexo vulcânico do que é hoje S. Miguel terá estado activo durante quase quatro séculos, há cerca de 4 milhões de anos atrás, na zona actualmente designada por Nordeste. Tal complexo, juntamente com o segundo, que ocorreu na actual zona de Povoação, terão vindo a constituir o núcleo actual da Ilha.



Fig. 2 - Ilha de S. Miguel


Bastante mais tarde, há cerca de 800 mil anos, surgiu um novo complexo vulcânico onde se situa hoje o Vale das Furnas, que veio aumentar significativamente a área já aflorada. Cerca de 250 anos mais tarde aflorou o vulcão das Sete Cidades, que veio a originar uma segunda ilha nas imediações da primeira. Esta sofreu, 260 anos mais tarde um terceiro afloramento, então na região da actual Lagoa do Fogo, beneficiando assim de um novo crescimento.

Com o decorrer dos séculos, os materiais expelidos pelos vulcões activos foram fazendo crescer lateralmente os vários afloramentos existentes, acabando por preencher o intervalo entre as duas ilhas inicialmente formadas. Tal preenchimento ocorreu ao longo do Complexo dos Picos que, ainda hoje constitui a zona mais baixa da Ilha.

Terá sido graças a tão fantásticos fenómenos, ocorridos ao longo de milhões de anos, que eu pude ter tido o privilégio de visitar várias vezes a Ilha de S. Miguel, ainda que só da primeira em turismo e para visitar amigos temporariamente radicados em Ponta Delgada. Contudo, pelas singularidades que esta Ilha me tem vindo a revelar, durante as minhas outras visitas, nunca resisti a “conhecer um pouco mais” dela. Sem dúvida que, ainda que as referidas singularidades possam ter sido mais ou menos influenciadas pelo Homem, elas devem-se, basicamente, à origem vulcânica da Ilha.


                                  Fig. 3 - Fumarolas no Vale das Furnas

     Que se saiba, o Homem só pisou a Ilha de S. Miguel quando, no primeiro quartel do século XV, uma nau portuguesa, capitaneada por Gonçalo Velho – cavaleiro e frade da Ordem de Cristo e Senhor de Almourol – ancorou nas areias da Ilha, num local que, por essa razão, veio a designar-se por Povoação. Pouco depois, para se assegurar das condições de povoamento da Ilha, tal como aconteceu com Porto Santo, o Infante D. Henrique, segundo uns cronistas, ou o Infante D. Pedro, segundo outros, nela mandaram espalhar cabras, ovelhas, vacas e outros gados.

Segundo reza a História, foi D. Afonso V de Portugal quem iniciou o povoamento da Ilha com estremenhos, alentejanos e algarvios e mais tarde com madeirenses, judeus e mouros. Contudo, parece ter sido o Infante D. Pedro quem a rebaptizou. Segundo vários cronistas, foi o especial culto deste Infante pelo Arcanjo S. Miguel que o terá levado a mudar o nome da Ilha – de Caprari ou das cabras – para o de S. Miguel.

Também ao que consta o desenvolvimento económico da Ilha terá decorrido fundamentalmente da riqueza dos seus solos vulcânicos que, com êxito, foi permitindo variar compassadamente o tipo de culturas que, por razões conjunturais, tiveram de se moldar significativamente às necessidades trazidas pelo tempo. Primeiro, trigo e plantas tintureiras, como o pastel e a urzela, depois linho, laranjas, batata-doce e outras e, mais recentemente, tabaco, ananases, chá e chá. Ao que parece, a Lei das Sesmarias, inicialmente implementada pelo rei D. Fernando, ao permitir tirar as terras a quem as não trabalhasse e dá-las a quem delas bem cuidasse, terá contribuído muito positivamente para o adequado povoamento e diversas plantações na Ilha de S. Miguel.

                 

         Fig, 4 – Aspectos das actuais produções de ananases, tabaco e chá  


Tendo em conta as origens vulcânicas desta Ilha, e esperando que ela mostrasse preferencialmente tons de cinza e castanhos de lava, fiquei agradavelmente surpreendida quando nela aterrei pela primeira vez, em 1980. Custou-me então a acreditar que a paisagem com uma incrível profusão de verdes e flores de todas as cores, “salpicada” aqui e ali por pachorrentas vacas, que estava avistando, pertencesse à Ilha que eu havia imaginado. Por outro lado entendi claramente a razão pela qual chamavam ao aeroporto de Ponta Delgada o “Aerovacas”.

Tive então o privilégio de ser recebida por uns amigos que, vivendo em Ponta Delgada - a actual capital da Ilha, que substituiu Vila Franca do Campo, a sua anterior capital quase totalmente destruída pelo sismo de 1522 –, estavam apostados em me mostrar o que de mais belo a Ilha tem para oferecer aos visitantes.



     Fig. 5 - Aspectos de Vila Franca do Campo, a primeira capital da Ilha 

Não me detenho na descrição das mais belas Igrejas e Conventos de Ponta Delgada, ou mesmo nas lindas portas da cidade, avenida do Infante ou marina, cujas referências podem ser encontradas com vantagem nos guias turísticos da Ilha. Limitar-me-ei a fazer especial referência ao Tesouro do Senhor Santo Cristo dos Milagres e ao Museu Carlos Machado.

No primeiro caso registo a Coroa de Espinhos cravejada de diamantes e rubis, a Cana, a Espiga, o Ceptro, o Relicário e ainda o Resplendor de ouro e prata que, no seu conjunto, constituem um dos mais belos exemplos da ourivesaria portuguesa do século XVIII. Fique um registo especial à corda de ouro começada a tecer pela Madre Teresa da Anunciada. Esta religiosa veio a ficar célebre por ter dedicado especial culto à imagem de “Ecce Homo” que havia sido oferecido a freiras da Ilha pelo papa Paulo III, iniciou, sem o saber, o actual culto ao Senhor Santo Cristo dos Milagres, agora célebre em diferentes partes do mundo. 


               Fig. 6 - Andor do Senhor Santo Cristo dos Milagres


A sua procissão, que se realiza todos os anos, no quinto domingo depois da Páscoa, percorre desde há muito as ruas de Ponta Delgada, que, para o efeito, são atapetadas – com o auxílio inicial de moldes de madeira -  com autênticas quadros policromáticos feitos com milhões de pétalas de flores da Ilha, formando variados e lindos desenhos. Tornou-se conhecida e participada por gente de numerosos países, graças à difusão feita pelas comunidades de emigrantes açorianos espalhadas pelo mundo.

Por sua vez, no Museu Carlos Machado, instalado desde 1943 no Antigo Convento de Santo André, muito mais do que os seus quadros representativos da pintura dos séculos XIX e XX, ou do que as suas belas peças de escultura e ourivesaria, impressionaram-me muito especialmente as suas colecções de História Natural. E, de entre elas, saliento a sua colecção de animais com deformações congénitas, como por exemplo um vitelo com duas cabeças, ou outro com mais de quatro membros, bem como as excelentes colecções de aves e insectos do museu.

Uma outra singularidade de Ponta Delgada, que vim depois a verificar ser extensiva em toda a Ilha, prende-se com a sua arquitectura. Fruto de uma excelente e sábia combinação do negro das rochas basálticas provenientes dos antigos vulcões, com o imaculado branco da cal, esta arquitectura de estilo tipicamente açoriano faz sobressair de forma ímpar, o rico património com mais de cinco séculos de que a Ilha de S. Miguel é detentora. 



Fig. 7 - a) Portas da cidade de Ponta Delgada e calçada à portuguesa, b) janela e c)  e uma das numerosas Igrejas da Ilha


     Deixando Ponta Delgada, já no final do meu segundo dia na Ilha, observei que a minha amiga preparava uma grande panela de cozido à portuguesa. Soube depois que o acabou de preparar antes de me despertar no dia seguinte, ainda a alvorada vinha muito longe, e de quase me “arrastar” para a cozinha, onde os homens introduziram a panela numa grande saca de tecido e, posteriormente, num suporte da mala do carro, ali existente para esse fim. Entrámos então todos no carro a caminho de um destino que não me havia sido revelado. Após algum tempo de viagem, ainda em plena noite, parámos num vale que então me foi dito ser o Vale das Furnas, no qual assisti à cuidadosa introdução da saca bem atada contendo a panela, num dos muitos buracos do solo ali existentes, e que vim a saber serem as célebres Caldeiras das Furnas.

   Coberta a caldeira natural, seguimos viagem ainda durante bastante tempo, não sei quanto pois ainda ia “meia a dormir”, até que parámos numa das mais de 40 pontas da Ilha, a Ponta da Madrugada. E garanto-lhe, caro Leitor, que de verdade valeu a pena o sacrifício de me levantar tão cedo. Aquele foi sem dúvida o mais belo alvorecer a que havia tido oportunidade de assistir em toda a minha vida! Simplesmente fantástico! Tanto em colorido, como em luminosidade, tranquilidade e paisagem natural pura.

                                         
                                          
                   Fig. 8 – Imagens da Ponta da Madrugada

     Já manhã clara, deixei a custo tão belo lugar de regresso ao Vale das Furnas, onde o nosso cozido para o almoço levaria um total de cerca de 6 a 7 horas a cozinhar. Aproveitando o clima de excepcional amenidade que se fazia sentir, graças à regulação térmica exercida pelo Oceano Atlântico, ao anticiclone dos Açores e à presença das águas quentes das correntes do Golfo, fomos contornando a costa sudeste de S. Miguel, na qual as escoadas vulcânicas estão recortadas pelo mar e talhadas frequentemente em arribas abruptas. Por sua vez, as terras mais planas situadas entre estas, as “fajãs”, estavam ocupadas por vegetação característica do clima temperado e também do tropical, com especial incidência nos cereais, como o trigo e o milho, nos legumes, na chicória, na beterraba sacarina e ainda nos frutos, tais como o ananás e as bananas.


                                             Fig. 9 – Arribas e fajãs da Ilha

Depois de passarmos por Água Retorta e por Povoação, seguimos em direcção, primeiro, ao Pico do Ferro, depois ao Salto do Cavalo, dois dos lugares mais propícios para apreciar o Vale e a Lagoa das Furnas. Esta última, tal como as restantes Lagoas importantes da Ilha, está situada na região onde há 800 mil anos se activou o vulcão com o mesmo nome e que, chegando a ocupar 200 quilómetros quadrados, está hoje reduzida a cerca de 80 quilómetros quadrados, dando origem a sucessivas caldeiras de colapso actualmente preenchidas por diversas lagoas mais pequenas.

                                   Fig. 10 – Lagoa das Sete Cidades

         Do Pico do Ferro tive a oportunidade de admirar uma das mais antigas crateras da Ilha de S. Miguel, no fundo da qual, magnificamente emoldurada com um luxuriante verde, sobressai a Lagoa das Furnas, com o seu pitoresco vale, em que o branco do casario contrasta lindamente com o verde da paisagem salpicado por numerosos tufos de flores da época. A alguns quilómetros de distância, no Miradouro do Salto do Cavalo, situado a cerca de 800 metros de altitude, pude desfrutar de uma deslumbrante paisagem que englobava não só toda a envolvente da Lagoa das Furnas como uma vasta extensão que separa a sua cratera da costa Nordeste da Ilha. Esta, por sua vez, parecia ter saído da palete de um pintor, representando uma profusão de verdes recortados aqui e ali pelos azuis característicos do mar e do céu. Um verdadeiro deslumbramento para os amantes da mãe Natureza!

   Magnífica também foi a estrada pela qual descemos seguidamente para o Vale das Furnas, que, em cada curva, revelava novas perspectivas da vegetação luxuriante da região, jogos de água, com mais ou menos ténues vapores, e uma profusão de flores de que destaco, em diferentes estados de floração, as hortênsias e as azáleas em verdes fundos de criptomérias. 





               Fig. 11 –  Hortensias e azáleas bordejando estradas da Ilha

    Já mais no interior da cratera começou a ser frequente vislumbrar a existência de caldeiras, cascatas, nascentes de água fervente e fumarolas. Trata-se na realidade das mais espectaculares manifestações de vulcanismo secundário que me foram dadas admirar até hoje! É incrível como tais manifestações telúricas podem incluir, quase lado a lado, cavidades de água sulfurosa fervente e nascentes de água fresca cristalina, com excelentes propriedades termais! Adquiriram aquelas, tão grande importância, que as mais de vinte nascentes que se desenvolveram junto das caldeiras e nas margens da Ribeira dos Tambores, parecem formar, actualmente, um dos recursos hídricos mais ricos da Europa.



 

  Fig. 12 –  Aspectos do Vale das Furnas e introdução do nosso cozido num dos buracos do solo
      
     Pareceu-me ainda notável observar o casario das Furnas, a paredes-meias com tais fenómenos naturais! Inclui lindas casas apalaçadas rodeadas de frondosos jardins, lado a lado com outras mais modestas de diferentes épocas. 


  Fig. 13 – Casario das Furnas,paredes-meias com as ditas

        Pensando no extraordinário de tudo isto, dirigi-me a um senhor idoso que estava à janela de uma das casas mais próximas das furnas e fumarolas e perguntei-lhe se não tinha receio de ali viver. A sua resposta, num açoriano típico carregado, não se fez esperar, e sem vislumbre de hesitação: 
-Mas “menina”, isso não tem qualquer problema! É preciso é saber como se deve proceder. Primeiro, vem-se abrir os buracos para os alicerces da casa. Depois espera-se o tempo necessário para que todas as pressões locais sejam totalmente libertadas e que a água deixe de borbulhar. Pode levar meses! Depois…é só construir a casa e vir para cá viver. E pode ter a certeza de que, não obstante as furnas funcionarem como uns autênticos intestinos da Terra, este lugar não só é seguro, como bastante saudável! Fixe-se bem no meu aspecto. Tenho noventa anos e sempre aqui vivi! E não sou só eu, nem é de agora. Informe-se da história do inglês Thomas Hickling. 
- Então quem ficou sem resposta fui eu, porque, na realidade, o meu interlocutor não parecia nada ter aquela idade, sendo o seu aspecto a todos os títulos notável. Foi assim que compreendi a razão pela qual aquela zona possui estâncias termais tão frequentemente procuradas por numerosas pessoas dos Açores e das mais variadas partes do mundo.




Fig. 14 - Piscina de água férrea do parque Terra Nostra

    Pouco depois, voltei com os meus companheiros às caldeiras onde, após ter sido retirado do respectivo buraco, tive o prazer de saborear o nosso cozido, tão condignamente quanto tal iguaria merece, numa das numerosas mesas ali disponibilizadas para o efeito. E que saboroso cozido! Tal sabor, com um “piquinho”, só pôde ser comparado por mim, ao que tive a possibilidade de sentir quando, algum tempo depois voltei às Furnas para tomar banho na piscina de águas férreas e deliciar-me com uma caldeirada de bacalhau, no restaurante do Hotel das Furnas, adjacente ao Parque Terra Nostra.



 

Fig. 15 – Aspectos  do Parque Terra Nostra   
    
Na visita a este parque vim a saber que Thomas Hickling foi um americano que, tendo visitado a Ilha em 1769, com 26 anos de idade, por ela ficou tão apaixonado que ali decidiu viver o resto da sua vida, tendo morrido só aos 91 anos. Acabou por fazer fortuna com negócios de exportação de vários produtos produzidos na Ilha, entre os quais se destacam as laranjas. Escolheu para local de repouso o Vale das Furnas, onde construiu um palacete com um bonito jardim, a que chamou “Yankee Hall”. Mal sabia ele que, ao mandar plantar as primeiras árvores exóticas na região, dava início ao que é hoje o espectacular Parque Terra Nostra!

Sendo um paradisíaco espaço, rico em vegetação luxuriante, incluindo um bonito traçado de sinuosos caminhos e com artísticos lagos, alternados com espectaculares alamedas bordejadas por coloridas flores, plantas exóticas e árvores seculares, este parque constitui um dos mais belos jardins do século XVIII da Ilha de S. Miguel. 


             Fig. 16 – Alameda bordejada com coloridas flores

Integra ainda um grande lago, que é uma autêntica piscina de água férrea morna, no qual, quem tal como eu lá tomou banho, não irá mais esquecer tão agradável sensação. Ao redor do lago brotam exuberantes tufos de flores das mais variadas espécies, na vizinhança de um Parque Florestal e de um Posto Aquícula para produção artificial de trutas. O primeiro fornece uma significativa variedade de plantas ornamentais aos jardins da Ilha, enquanto o segundo contribui significativamente para o povoamento das suas lagoas e ribeiras.

De realçar ainda a beleza do Vale dos Fetos, cuja dimensão impressiona a tal ponto que poderíamos pensar estar num parque pré-histórico. Tal desenvolvimento do reino vegetal no Vale das Furnas sugere que a maioria das plantas que nele se desenvolvem de forma luxuriante, estendendo as suas raízes através do solo vulcânico do vale, nele encontram certamente um extraordinário alimento rico nos elementos químicos fundamentais ao seu alimento. A isto acresce também um ameno clima, com temperaturas ao longo de todo o ano normalmente compreendidas entre os 14 e os 21º C, embora frequentemente ocorram as quatro estações do ano num mesmo dia.
 
          Fig. 17 – Recanto do Vale dos Fetos do Parque


No quarto dia da minha primeira visita a S. Miguel os meus companheiros levaram-me a visitar outro local fantástico da Ilha: a região das Sete Cidades. Logo pela manhã dirigimo-nos para o Noroeste de Ponta Delgada e, a alguns quilómetros de Feteiras, começámos a subir para a célebre Lagoa das Sete Cidades, através de uma estrada bordejada de maciços de hortênsias e matas quase contínuas de criptomérias. Mas foi quando chegámos ao Miradouro da Vista do Rei - assim chamado por ter sido dali que o rei D. Carlos de Portugal e sua esposa, a rainha D. Amélia, apreciaram a lagoa, aquando da sua visita à Ilha em 1901 – que a Lagoa das Sete Cidades se mostrou com toda a sua beleza, como se duas lagoas se tratasse.




  
        
Fig. 18 – Lagoa das Sete Cidades apreciada de diferentes ângulos

Tive a imensa sorte de estar então um dia luminoso e de rara limpidez, que me permitiu, já no Miradouro do Cerrado, apreciar um belo azul de uma parte da Lagoa (normalmente designada por Lagoa Azul), enquanto de um miradouro mais abaixo pude observar a nítida cor verde esmeralda da outra parte da Lagoa. A beleza da paisagem era tal, que não resisti a pedir aos meus amigos que me levassem ao fundo da cratera, mais precisamente à encantadora povoação das Sete Cidades, com a sua igreja de S. Nicolau e as suas pequenas casas, segundo a traça tradicional da Ilha, mantendo as largas chaminés e o forno à antiga.

         Ali, não sei ao certo o que mais me encantou, se a excepcional beleza do lugar, se a simplicidade, a simpatia e a hospitalidade da sua gente. Subitamente, sem que nada fizéssemos para isso, vimo-nos envolvidos por algumas mulheres que, tendo acabado de fazer os seus queijos brancos, com o leite fresco das numerosas vacas do vale, queriam “à viva força” que os apreciássemos. Dissemos – lhes que não tínhamos onde colocá-los para os provar, ao que nos responderam que não havia qualquer problema, tendo duas delas rodopiado sobre os calcanhares e, num ápice, voltado com algumas folhas de repolho acabadas de lavar para que nelas colocássemos queijo para provar. Sendo delicioso o queijo, quisemos comprar alguns para trazer, mas não aceitaram o dinheiro, pois, segundo explicaram, aqueles queijos tinham sido feitos para, naquele dia oferecerem aos primeiros visitantes que se aventurassem a descer à povoação. E não é que a sorte nos calhou a nós?!

         Tão bem nos sentimos naquele lugar que acabámos por almoçar na povoação, tendo apreciado um bem cuidado prato de vitela que, por ter sido alimentada com erva fresca do vale, era macia como “manteiga”. Provámos depois compota de capucho, um fruto verde típico açoriano, a que se seguiram umas fantásticas barrigas de freira acompanhadas de um odorífico chá da Goreana. Já tarde - pois ficámos à conversa com os nossos anfitriões, que nos foram contando numerosas lendas sobre a origem da Lagoa das Sete Cidades, a maioria delas, como é habitual, envolvendo belas princesas e os seus apaixonados, mas tendo em comum a existência, ali, de 7 cidades, que foram engolidas pelas águas, sempre como castigo de algo que correu menos bem em cada lenda – regressámos a Ponta Delgada fazendo um desvio ao litoral, com o intuito de lanchar as célebres "cracas", de que tanto ouvira falar, no Continente. Muito especialmente, do inesquecível sabor do seu “molhinho”!

         Entrando no restaurante indicado para o efeito, apressei-me a pedir as ditas cracas. A primeira surpresa com que deparei foi o preço: apenas oitenta escudos o quilo! Perante tal “pechincha”, encomendei de imediato um quilo de "cracas". Mas, surpresa das surpresas, quando o empregado voltou à mesa, o que vi foi uma bandeja com um montinho de pequenos pedaços de rochas lá dentro! Mas o que é isto? Perguntei atónita ao simpático empregado, ao que ele me respondeu:
         - Ai nã sabe? As "cracas" são um marisco minúsculo que vive nos orifícios das rochas. Para saborear o seu excelente molhinho, tem de colocar a boca nos orifícios dessas rochas e chupar com força o seu conteúdo. Vai ver o que é bom!

         - Realmente a aguinha que sorvi de alguns daqueles orifícios das pedras era bastante saborosa, diria mesmo que sabia a um “mar gostoso”. Contudo, isso não impediu que as "cracas" me desiludissem! E, para que todos provassem, houve que pedir mais uns quilitos de pedras...a oitenta escudos cada! Em compensação, as grandes lapas grelhadas que se seguiram eram não só deliciosas, como anormalmente grandes, em relação às habituais no Continente. Já bem lanchados, regressámos então a casa satisfeitos...e com vontade de dormir!


                                                 Fig. 19 – Lapas grelhadas
        
No dia seguinte partimos de Ponta Delgada logo pela manhã, como intuito de visitar o segundo centro mais populacional da Ilha, depois da sua capital – a cidade da Ribeira Grande – e apreciar um pouco da sua costa norte, regressando depois pela estrada de acesso à Lagoa do Fogo.

         Passada Ribeira Seca, chegámos à Ribeira Grande, cuja arquitectura basáltica, com especial destaque para os seus numerosos solares dos séculos XVII e XVIII, é claramente digna de excelente nota. De tudo que me foi dado ali visitar nesse dia, saliento quatro aspectos singulares da cidade e arredores. O primeiro prende-se com a belíssima fachada barroca do século XVIII da Igreja do Espírito Santo. O segundo, com o Jardim do Paraíso que, rodeando o percurso da ribeira que deu o nome à cidade, exibe ainda nas margens dos seus canais de pedra, alguns testemunhos dos antigos moinhos de água, usados inicialmente para moer cereais e, posteriormente, pastel tintureiro - que tão importante foi para o desenvolvimento económico da Ilha – sendo que alguns ainda moíam à data da minha visita.

         O terceiro aspecto singular da cidade prende-se com o seu Arcano da Madre Margarida do Apocalipse. Esta religiosa dedicou cerca de vinte anos da sua vida, mais precisamente entre 1836 e 1856, a executar – com farinha de arroz e goma-arábica, fazendo recurso complementar a tecidos, vidro e cartolina – os milhares de figuras que, no seu actual Arcano, representam em 72 núcleos, distribuídos por diferentes planos, numerosas cenas do Antigo e Novo Testamentos.


                        Fig. 20 - Cena do Arcano da Ribeira Grande 

         O quarto aspecto singular da região da Ribeira Grande interliga-se com os seus poços geotérmicos, só possíveis pelas características muito particulares de certas zonas do subsolo da região. Tais características só são reunidas porque a Ilha de S. Miguel se localiza, tal como já referido, na confluência de diferentes falhas das placas tectónicas, sendo por tal razão o subsolo de algumas das suas sub-regiões dotado de uma relativamente elevada energia térmica endógena. Decorrendo deste facto, em 1973, uma equipa de geólogos canadianos descobriu um grande reservatório geotérmico natural com temperaturas superiores a 200ºC (por isso designado como um reservatório de alta entalpia). A existência desse reservatório veio a permitir que, em 1980, tivesse arrancado a primeira Central Geotérmica Piloto do Pico Vermelho, para transformar energia térmica em electricidade. Os bons resultados nela obtidos vieram a justificar o arranque da nova central, ainda mais potente que a primeira, que tive a oportunidade de visitar nesse dia nos arredores da Ribeira Grande.

                        Fig. 21 - Central Geotérmica na Ribeira Grande


         Após esta interessante e invulgar visita a uma central energética que, através de adequados processos tecnológicos, permite transformar o calor do subsolo em energia eléctrica, reduzindo assim a dependência energética da Ilha e o seu consumo de petróleo, voltámos à cidade da Ribeira Grande onde almocei um delicioso peixe fresco, seguido por um perfumado e doce ananás e, finalmente, por uns confeitos da Ribeira Grande, acompanhados por um licor de maracujá, todos frutos do labor na Ilha.

         Seguimos depois, por Ribeirinha, para a costa norte da Ilha, onde uma paisagem inesperada me aguardava. Não obstante as escoadas de lava e as acumulações de cinzas e blocos se encontrarem claramente talhados pelas ondas, formando altas arribas abruptas e quase contínuas sobre o oceano, como que emergindo das plataformas rochosas existentes sobre as arribas, também ali se via uma vegetação variada e bela! A presença de tal vegetação naquelas plataformas é, realmente, uma prova irrefutável da excepcionalidade do clima e da riqueza dos solos Micaelenses! Estes últimos, ao que parece, só são deficientes em cálcio, devido à ausência de rochas calcárias. É, por esta razão, que os habitantes da Ilha são aconselhados a tomar adequados suplementos de cálcio, de modo a prevenir uma doença de ossos, de que antigamente muitos idosos ali sofriam, conhecida pela “doença do machado”.                                                    

Fig. 23– Aspecto da Costa Norte 
        
 Voltando a passar pela Ribeira Grande, tomámos, seguidamente, a estrada na direcção da almejada Lagoa do Fogo. Do alto da Serra de Água de Pau, foi-me dado avistar a Central Geotérmica, agora de longe e de cima, toda ela coberta por uma grande nuvem de vapor.

Continuando a estrada, passei pela Caldeira Velha com a sua pequena cascata e a sua tranquila beleza verde até que, após um percurso de estrada rico em curvas e contracurvas, surgiu subitamente a deslumbrante visão da Lagoa do Fogo. Pelos complexos recortes desta Lagoa torna-se por demais evidente que nem a magnífica palete de tons de verde e azul, embelezada pela luz de um sol ainda alto, consegue esconder o efeito das incríveis forças vulcânicas que há milhões de anos lhe deram origem.

                                                 Fig. 24 - Lagoa do Fogo


   Lá bem no fundo da cratera, entre as margens intensamente recortadas da Lagoa, espraiam-se as suas lânguidas águas, terminadas, aqui e ali, por pequenas penínsulas separadas por minúsculas praias aparentemente inacessíveis. E ao longe, do lado Sul, entre as cristas dos picos cobertos por bosques da Reserva Natural, uma estreita faixa do Atlântico parece espreitar a sua filha Lagoa do Fogo, que nele teve origem há mais de 290 mil anos.

         Assim, depois de um dia maravilhoso, após ter passado por Remédios e Lagoa, tomámos já tarde alta a estrada da beira-mar, na costa Sul da Ilha, para regressar a Ponta Delgada de onde, no dia seguinte, partimos de regresso a Lisboa.

         Voltei à Ilha de S. Miguel, em trabalho, várias vezes e, em cada uma delas, fui descobrindo novos encantos e prazeres. E se há algo nela que se me vai tornando cada vez mais singular é o facto de os seus mais variados percursos integrarem uma verdadeira escola sobre as transformações do nosso Planeta! Eles constituem um autêntico museu de fenómenos vulcânicos e de materiais expelidos pelos vulcões ao longo de milhões de anos, bem como das transformações dos mesmos, provocadas quer pelos agentes climatéricos, quer pelo próprio oceano.

         De todos os lugares do Globo que já visitei, só a Ilha de S. Miguel permite observar em toda a sua pujante beleza diferentes tipos de cones vulcânicos, bem como as transformações por estes sofridos em diferentes tubos lávicos. Tais transformações tiveram início com a formação de uma crosta sólida sobre a escoada de lava fluida de um vulcão em perda de actividade, seguindo-se a formação de um vazio sob a referida crosta, consequente da regressão do volume da lava. Finalmente, a interrupção da erupção vulcânica criou grutas ou túneis de lavas (túneis lávicos), que atingem actualmente quilómetros de extensão e que podem, alguns deles, ser visitados em S. Miguel pelos eventuais interessados!
 

              Fig. 25 – Esquema de formação de um tubo lávico 
                           (Cortesia da Direcção Regional de Turismo dos Açores)


         Mesmo para os menos corajosos que não se aventurem na visita ao interior dos tubos lávicos, ficam as muitas caldeiras de abatimento dos cumes dos cones vulcânicos que, com o decorrer dos tempos, e a acumulação das águas da chuva, se transformaram nas maravilhosas Lagoas e Lagos de S. Miguel.

 Ficam também os materiais eruptivos, com especial incidência nos basaltos, que têm conduzido ao excepcional património arquitectónico micaelense.

 Ficam ainda muitos outros materiais expelidos pelos vulcões que, através de uma degradação milenar pelos agentes atmosféricos, conduziram aos solos, cuja riqueza em elementos essenciais à vida vegetal permitem que em S. Miguel os fetos e muitas árvores exóticas atinjam dimensões tais, que cheguei a pensar encontrar-me em locais pré-históricos. A riqueza do solo, associada ao clima da Ilha, permite que, a partir de Abril, a mesma se transforme num autêntico jardim encantado das mais maravilhosas e variadas flores.




                

                          Fig. 26 –  Algumas flores da Ilha

Fica uma energia térmica endógena em alguns locais do subsolo da Ilha, que permite a sua transformação em energia eléctrica, um dos factores do seu desenvolvimento. É a mesma energia, porém com menor intensidade que, nas Furnas, não só permite saborear os tão apreciados cozidos, caldeiradas e outros pitéus das Caldeiras, como tomar banho numa piscina natural de água férrea, onde, quem lá tomou banho, nunca mais esquecerá o quão agradável foi fazê-lo.
                             Fig. 27 – Cozido preparado nas Furnas 

É ainda devido à singular existência de reservatórios rochosos naturais de elevadíssima capacidade de isolamento térmico que, surpreendentemente, é possível no Vale das Furnas, ao lado das caldeiras e fumarolas, brotarem nascentes de águas frescas e cristalinas, cuja qualidade hídrica já granjeou um lugar de destaque na Europa.

Uma palavra final sobre o seu artesanato. Não para falar dos seus bonitos bordados e cerâmicas azuis, ou do seu mobiliário caseiro, mas sim, e muito especialmente, dos excepcionais quadros e arranjos de flores totalmente construídos com escamas de peixe, e fruto de uma paciência e habilidades infinitas, bem como dos originais trabalhos feitos com ossos das baleias antigamente arpoadas ao largo da Ilha.

                         Fig. 28 – Flor feita com escamas de peixe

A Ilha de S. Miguel, do grupo Oriental do Arquipélago dos Açores, é, de facto, um local especial e único, no nosso maravilhoso Planeta Terra!