Tratando de Ilhas singulares, não posso deixar de falar da Ilha de S. Miguel, a maior das 9 ilhas do Arquipélago dos Açores, que, segundo a canção, “são ilhas de bruma...onde as gaivotas beijam a terra”. Não obstante os seus apenas
Fig. 1 – Localização de S. Miguel no
Arquipélago dos Açores
Ainda que no livro de banda desenhada
das aventuras de Black e Mortimer, intitulado “O Enigma da Atlântida”, a Ilha
de S. Miguel seja referida como uma das portas de saída da Atlântida, a sua
origem já saiu há muitos anos das brumas míticas da Atlântida por se ter
encontrado para ela uma justificação bastante mais credível. De acordo com os
conhecimentos actuais, com a fragmentação do super continente Pangea há quase 200
milhões de anos, não só se separaram os actuais Continentes, Africano, Europeu
e Americano, como se criou, entre eles, o Oceano Atlântico.
Em consequência
deste fantástico super processo de transformação do Planeta Terra, também a
placa tectónica que, no interior dela, envolve as lavas aí existentes se
fragmentou, originando distintas placas separadas por longas fracturas ou
falhas. Muitos milhões de anos atrás o extravasamento de lavas do interior da
Terra através dessas fissuras, seguido da ascensão e solidificação daquelas
lavas, originou uma cordilheira de montanhas submarinas no seio do Atlântico,
que, actualmente, se conhece por Dorsal Atlântica.
Ora, encontrando-se a zona onde actualmente existem as
Ilhas de S. Miguel e da Terceira sobre uma grande falha, que vai da dorsal
atlântica até ao Estreito de Gibraltar e separa as placas europeia e africana, a
mesma ficou também naturalmente sujeita à ascensão de lavas com posterior
solidificação (afloramento).
Ainda de acordo com o conhecimento actual,
considera-se que o afloramento do primeiro complexo vulcânico do que é hoje S.
Miguel terá estado activo durante quase quatro séculos, há cerca de 4 milhões
de anos atrás, na zona actualmente designada por Nordeste. Tal complexo,
juntamente com o segundo, que ocorreu na actual zona de Povoação, terão vindo a
constituir o núcleo actual da Ilha.
Bastante mais tarde, há cerca de 800 mil anos, surgiu um novo complexo vulcânico onde se situa hoje o Vale das Furnas, que veio aumentar significativamente a área já aflorada. Cerca de 250 anos mais tarde aflorou o vulcão das Sete Cidades, que veio a originar uma segunda ilha nas imediações da primeira. Esta sofreu, 260 anos mais tarde um terceiro afloramento, então na região da actual Lagoa do Fogo, beneficiando assim de um novo crescimento.
Com o decorrer dos séculos, os materiais expelidos
pelos vulcões activos foram fazendo crescer lateralmente os vários
afloramentos existentes, acabando por preencher o intervalo entre as duas ilhas
inicialmente formadas. Tal preenchimento ocorreu ao longo do Complexo dos Picos
que, ainda hoje constitui a zona mais baixa da Ilha.
Terá sido graças a tão fantásticos fenómenos,
ocorridos ao longo de milhões de anos, que eu pude ter tido o privilégio de
visitar várias vezes a Ilha de S. Miguel, ainda que só da primeira em turismo e
para visitar amigos temporariamente radicados em Ponta Delgada. Contudo ,
pelas singularidades que esta Ilha me tem vindo a revelar, durante as minhas
outras visitas, nunca resisti a “conhecer um pouco mais” dela. Sem dúvida que,
ainda que as referidas singularidades possam ter sido mais ou menos
influenciadas pelo Homem, elas devem-se, basicamente, à origem vulcânica da
Ilha.
Fig. 3 - Fumarolas no Vale das Furnas
Fig. 3 - Fumarolas no Vale das Furnas
Que se saiba, o Homem só pisou a Ilha de S. Miguel
quando, no primeiro quartel do século XV, uma nau portuguesa, capitaneada por
Gonçalo Velho – cavaleiro e frade da Ordem de Cristo e Senhor de Almourol –
ancorou nas areias da Ilha, num local que, por essa razão, veio a designar-se
por Povoação. Pouco depois, para se assegurar das condições de povoamento da
Ilha, tal como aconteceu com Porto Santo, o Infante D. Henrique, segundo uns
cronistas, ou o Infante D. Pedro, segundo outros, nela mandaram espalhar cabras,
ovelhas, vacas e outros gados.
Segundo reza a História, foi D. Afonso V de Portugal
quem iniciou o povoamento da Ilha com estremenhos, alentejanos e algarvios e
mais tarde com madeirenses, judeus e mouros. Contudo, parece ter sido o Infante
D. Pedro quem a rebaptizou. Segundo vários cronistas, foi o especial culto
deste Infante pelo Arcanjo S. Miguel que o terá levado a mudar o nome da Ilha – de Caprari ou das cabras – para o de S. Miguel.
Também ao que consta o desenvolvimento económico da
Ilha terá decorrido fundamentalmente da riqueza dos seus solos vulcânicos que,
com êxito, foi permitindo variar compassadamente o tipo de culturas que, por
razões conjunturais, tiveram de se moldar significativamente às necessidades
trazidas pelo tempo. Primeiro, trigo e plantas tintureiras, como o pastel e a
urzela, depois linho, laranjas, batata-doce e outras e, mais recentemente,
tabaco, ananases, chá e chá. Ao que parece, a Lei das Sesmarias,
inicialmente implementada pelo rei D. Fernando, ao permitir tirar as terras a
quem as não trabalhasse e dá-las a quem delas bem cuidasse, terá contribuído
muito positivamente para o adequado povoamento e diversas plantações na Ilha de S.
Miguel.
Tendo em conta as origens vulcânicas desta Ilha, e esperando que ela mostrasse preferencialmente tons de cinza e castanhos de lava, fiquei agradavelmente surpreendida quando nela aterrei pela primeira vez, em 1980. Custou-me então a acreditar que a paisagem com uma incrível profusão de verdes e flores de todas as cores, “salpicada” aqui e ali por pachorrentas vacas, que estava avistando, pertencesse à Ilha que eu havia imaginado. Por outro lado entendi claramente a razão pela qual chamavam ao aeroporto de Ponta Delgada o “Aerovacas”.
Tive então o privilégio de ser recebida por uns amigos
que, vivendo em Ponta
Delgada - a actual capital da Ilha, que substituiu Vila
Franca do Campo, a sua anterior capital quase totalmente destruída pelo sismo
de 1522 –, estavam apostados em me mostrar o que de mais belo a Ilha tem para
oferecer aos visitantes.
Fig. 5 - Aspectos de Vila Franca do Campo, a primeira capital da Ilha
Fig. 5 - Aspectos de Vila Franca do Campo, a primeira capital da Ilha
Não me detenho na descrição das mais belas Igrejas e
Conventos de Ponta Delgada, ou mesmo nas lindas portas da cidade, avenida do
Infante ou marina, cujas referências podem ser encontradas com vantagem nos
guias turísticos da Ilha. Limitar-me-ei a fazer especial referência ao Tesouro
do Senhor Santo Cristo dos Milagres e ao Museu Carlos Machado.
No primeiro caso registo a Coroa de Espinhos cravejada
de diamantes e rubis, a Cana, a Espiga, o Ceptro, o Relicário e ainda o
Resplendor de ouro e prata que, no seu conjunto, constituem um dos mais belos
exemplos da ourivesaria portuguesa do século XVIII. Fique um registo especial à
corda de ouro começada a tecer pela Madre Teresa da Anunciada. Esta religiosa
veio a ficar célebre por ter dedicado especial culto à imagem de “Ecce Homo”
que havia sido oferecido a freiras da Ilha pelo papa Paulo III, iniciou, sem o
saber, o actual culto ao Senhor Santo Cristo dos Milagres, agora célebre em
diferentes partes do mundo.
Fig. 6 - Andor do Senhor Santo Cristo dos Milagres
Fig. 6 - Andor do Senhor Santo Cristo dos Milagres
A sua procissão, que se realiza todos os anos, no quinto domingo depois da Páscoa, percorre desde há muito as ruas de Ponta Delgada, que, para o efeito, são atapetadas – com o auxílio inicial de moldes de madeira - com autênticas quadros policromáticos feitos com milhões de pétalas de flores da Ilha, formando variados e lindos desenhos. Tornou-se conhecida e participada por gente de numerosos países, graças à difusão feita pelas comunidades de emigrantes açorianos espalhadas pelo mundo.
Uma outra singularidade de Ponta Delgada, que vim
depois a verificar ser extensiva em toda a Ilha, prende-se com a sua
arquitectura. Fruto de uma excelente e sábia combinação do negro das rochas
basálticas provenientes dos antigos vulcões, com o imaculado branco da cal,
esta arquitectura de estilo tipicamente açoriano faz sobressair de forma ímpar,
o rico património com mais de cinco séculos de que a Ilha de S. Miguel é
detentora.
Deixando Ponta Delgada, já no final do meu segundo dia na Ilha, observei que a minha amiga preparava uma grande panela de cozido à portuguesa. Soube depois que o acabou de preparar antes de me despertar no dia seguinte, ainda a alvorada vinha muito longe, e de quase me “arrastar” para a cozinha, onde os homens introduziram a panela numa grande saca de tecido e, posteriormente, num suporte da mala do carro, ali existente para esse fim. Entrámos então todos no carro a caminho de um destino que não me havia sido revelado. Após algum tempo de viagem, ainda em plena noite, parámos num vale que então me foi dito ser o Vale das Furnas, no qual assisti à cuidadosa introdução da saca bem atada contendo a panela, num dos muitos buracos do solo ali existentes, e que vim a saber serem as célebres Caldeiras das Furnas.
Fig. 8 – Imagens da Ponta da Madrugada
Já manhã clara, deixei a custo tão belo lugar de regresso ao Vale das Furnas, onde o nosso cozido para o almoço levaria um total de cerca de
Depois de passarmos por Água Retorta e por Povoação, seguimos
em direcção, primeiro, ao Pico do Ferro, depois ao Salto do Cavalo, dois dos
lugares mais propícios para apreciar o Vale e a Lagoa das Furnas. Esta última, tal
como as restantes Lagoas importantes da Ilha, está situada na região onde há
800 mil anos se activou o vulcão com o mesmo nome e que, chegando a ocupar 200 quilómetros
quadrados, está hoje reduzida a cerca de 80 quilómetros
quadrados, dando origem a sucessivas caldeiras de colapso actualmente
preenchidas por diversas lagoas mais pequenas.
Fig. 10 – Lagoa das Sete Cidades
Magnífica
também foi a estrada pela qual descemos seguidamente para o Vale das Furnas,
que, em cada curva, revelava novas perspectivas da vegetação luxuriante da
região, jogos de água, com mais ou menos ténues vapores, e uma profusão de
flores de que destaco, em diferentes estados de floração, as hortênsias e as
azáleas em verdes fundos de criptomérias.
Fig. 11 – Hortensias e azáleas bordejando estradas da Ilha
Já mais no interior da cratera começou a ser frequente vislumbrar a existência de caldeiras, cascatas, nascentes de água fervente e fumarolas. Trata-se na realidade das mais espectaculares manifestações de vulcanismo secundário que me foram dadas admirar até hoje! É incrível como tais manifestações telúricas podem incluir, quase lado a lado, cavidades de água sulfurosa fervente e nascentes de água fresca cristalina, com excelentes propriedades termais! Adquiriram aquelas, tão grande importância, que as mais de vinte nascentes que se desenvolveram junto das caldeiras e nas margens da Ribeira dos Tambores, parecem formar, actualmente, um dos recursos hídricos mais ricos da Europa.
Fig. 11 – Hortensias e azáleas bordejando estradas da Ilha
Já mais no interior da cratera começou a ser frequente vislumbrar a existência de caldeiras, cascatas, nascentes de água fervente e fumarolas. Trata-se na realidade das mais espectaculares manifestações de vulcanismo secundário que me foram dadas admirar até hoje! É incrível como tais manifestações telúricas podem incluir, quase lado a lado, cavidades de água sulfurosa fervente e nascentes de água fresca cristalina, com excelentes propriedades termais! Adquiriram aquelas, tão grande importância, que as mais de vinte nascentes que se desenvolveram junto das caldeiras e nas margens da Ribeira dos Tambores, parecem formar, actualmente, um dos recursos hídricos mais ricos da Europa.
Fig. 12 – Aspectos do Vale das Furnas e introdução do nosso cozido num dos buracos do solo
Pareceu-me ainda notável observar o casario das Furnas, a paredes-meias com tais fenómenos naturais! Inclui lindas casas apalaçadas rodeadas de frondosos jardins, lado a lado com outras mais modestas de diferentes épocas.
Fig. 13 – Casario das Furnas,paredes-meias com as ditas
Pensando no extraordinário de tudo isto, dirigi-me a um senhor idoso que estava à janela de uma das casas mais próximas das furnas e fumarolas e perguntei-lhe se não tinha receio de ali viver. A sua resposta, num açoriano típico carregado, não se fez esperar, e sem vislumbre de hesitação:
-Mas “menina”, isso não tem qualquer problema! É preciso é saber como se deve proceder. Primeiro, vem-se abrir os buracos para os alicerces da casa. Depois espera-se o tempo necessário para que todas as pressões locais sejam totalmente libertadas e que a água deixe de borbulhar. Pode levar meses! Depois…é só construir a casa e vir para cá viver. E pode ter a certeza de que, não obstante as furnas funcionarem como uns autênticos intestinos da Terra, este lugar não só é seguro, como bastante saudável! Fixe-se bem no meu aspecto. Tenho noventa anos e sempre aqui vivi! E não sou só eu, nem é de agora. Informe-se da história do inglês Thomas Hickling.
- Então quem ficou sem resposta fui eu, porque, na realidade, o meu interlocutor não parecia nada ter aquela idade, sendo o seu aspecto a todos os títulos notável. Foi assim que compreendi a razão pela qual aquela zona possui estâncias termais tão frequentemente procuradas por numerosas pessoas dos Açores e das mais variadas partes do mundo.
Pareceu-me ainda notável observar o casario das Furnas, a paredes-meias com tais fenómenos naturais! Inclui lindas casas apalaçadas rodeadas de frondosos jardins, lado a lado com outras mais modestas de diferentes épocas.
Fig. 13 – Casario das Furnas,paredes-meias com as ditas
Pensando no extraordinário de tudo isto, dirigi-me a um senhor idoso que estava à janela de uma das casas mais próximas das furnas e fumarolas e perguntei-lhe se não tinha receio de ali viver. A sua resposta, num açoriano típico carregado, não se fez esperar, e sem vislumbre de hesitação:
-Mas “menina”, isso não tem qualquer problema! É preciso é saber como se deve proceder. Primeiro, vem-se abrir os buracos para os alicerces da casa. Depois espera-se o tempo necessário para que todas as pressões locais sejam totalmente libertadas e que a água deixe de borbulhar. Pode levar meses! Depois…é só construir a casa e vir para cá viver. E pode ter a certeza de que, não obstante as furnas funcionarem como uns autênticos intestinos da Terra, este lugar não só é seguro, como bastante saudável! Fixe-se bem no meu aspecto. Tenho noventa anos e sempre aqui vivi! E não sou só eu, nem é de agora. Informe-se da história do inglês Thomas Hickling.
- Então quem ficou sem resposta fui eu, porque, na realidade, o meu interlocutor não parecia nada ter aquela idade, sendo o seu aspecto a todos os títulos notável. Foi assim que compreendi a razão pela qual aquela zona possui estâncias termais tão frequentemente procuradas por numerosas pessoas dos Açores e das mais variadas partes do mundo.
Fig. 14 - Piscina de água férrea do parque Terra Nostra
Pouco depois, voltei com os meus companheiros às caldeiras onde, após ter sido retirado do respectivo buraco, tive o prazer de saborear o nosso cozido, tão condignamente quanto tal iguaria merece, numa das numerosas mesas ali disponibilizadas para o efeito. E que saboroso cozido! Tal sabor, com um “piquinho”, só pôde ser comparado por mim, ao que tive a possibilidade de sentir quando, algum tempo depois voltei às Furnas para tomar banho na piscina de águas férreas e deliciar-me com uma caldeirada de bacalhau, no restaurante do Hotel das Furnas, adjacente ao Parque Terra Nostra.
Fig. 15 – Aspectos do Parque Terra Nostra
Na visita a este parque vim a saber que Thomas Hickling foi um americano que, tendo visitado a Ilha em 1769, com 26 anos de idade, por ela ficou tão apaixonado que ali decidiu viver o resto da sua vida, tendo morrido só aos 91 anos. Acabou por fazer fortuna com negócios de exportação de vários produtos produzidos na Ilha, entre os quais se destacam as laranjas. Escolheu para local de repouso o Vale das Furnas, onde construiu um palacete com um bonito jardim, a que chamou “Yankee Hall”. Mal sabia ele que, ao mandar plantar as primeiras árvores exóticas na região, dava início ao que é hoje o espectacular Parque Terra Nostra!
Sendo um paradisíaco espaço, rico em vegetação luxuriante, incluindo um bonito traçado de sinuosos caminhos e com artísticos lagos, alternados com espectaculares alamedas bordejadas por coloridas flores, plantas exóticas e árvores seculares, este parque constitui um dos mais belos jardins do século XVIII da Ilha de S. Miguel.
Fig. 16 – Alameda bordejada com coloridas flores
Integra ainda um grande lago, que é uma autêntica piscina de água férrea morna, no qual, quem tal como eu lá tomou banho, não irá mais esquecer tão agradável sensação. Ao redor do lago brotam exuberantes tufos de flores das mais variadas espécies, na vizinhança de um Parque Florestal e de um Posto Aquícula para produção artificial de trutas. O primeiro fornece uma significativa variedade de plantas ornamentais aos jardins da Ilha, enquanto o segundo contribui significativamente para o povoamento das suas lagoas e ribeiras.
De realçar ainda a beleza do Vale dos Fetos, cuja
dimensão impressiona a tal ponto que poderíamos pensar estar num parque
pré-histórico. Tal desenvolvimento do reino vegetal no Vale das Furnas sugere
que a maioria das plantas que nele se desenvolvem de forma luxuriante, estendendo
as suas raízes através do solo vulcânico do vale, nele encontram certamente um
extraordinário alimento rico nos elementos químicos fundamentais ao seu
alimento. A isto acresce também um ameno clima, com temperaturas ao longo de
todo o ano normalmente compreendidas entre os 14 e os 21º C, embora frequentemente
ocorram as quatro estações do ano num mesmo dia.
Fig. 17 – Recanto do Vale dos Fetos do Parque
No quarto dia da minha primeira visita a S. Miguel os
meus companheiros levaram-me a visitar outro local fantástico da Ilha: a região
das Sete Cidades. Logo pela manhã dirigimo-nos para o Noroeste de Ponta Delgada
e, a alguns quilómetros de Feteiras, começámos a subir para a célebre Lagoa das
Sete Cidades, através de uma estrada bordejada de maciços de hortênsias e matas
quase contínuas de criptomérias. Mas foi quando chegámos ao Miradouro da Vista
do Rei - assim chamado por ter sido dali que o rei D. Carlos de Portugal e sua
esposa, a rainha D. Amélia, apreciaram a lagoa, aquando da sua visita à Ilha em
1901 – que a Lagoa das Sete Cidades se mostrou com toda a sua beleza, como se
duas lagoas se tratasse.
Fig. 18 – Lagoa das Sete Cidades apreciada de diferentes ângulos
Tive a imensa sorte de estar então um dia luminoso e
de rara limpidez, que me permitiu, já no Miradouro do Cerrado, apreciar um belo
azul de uma parte da Lagoa (normalmente designada por Lagoa Azul), enquanto de
um miradouro mais abaixo pude observar a nítida cor verde esmeralda da outra
parte da Lagoa. A beleza da paisagem era tal, que não resisti a pedir aos meus
amigos que me levassem ao fundo da cratera, mais precisamente à encantadora
povoação das Sete Cidades, com a sua igreja de S. Nicolau e as suas pequenas
casas, segundo a traça tradicional da Ilha, mantendo as largas chaminés e o
forno à antiga.
Ali, não sei ao certo o que mais me
encantou, se a excepcional beleza do lugar, se a simplicidade, a simpatia e a
hospitalidade da sua gente. Subitamente, sem que nada fizéssemos para isso,
vimo-nos envolvidos por algumas mulheres que, tendo acabado de fazer os seus
queijos brancos, com o leite fresco das numerosas vacas do vale, queriam “à
viva força” que os apreciássemos. Dissemos – lhes que não tínhamos onde
colocá-los para os provar, ao que nos responderam que não havia qualquer
problema, tendo duas delas rodopiado sobre os calcanhares e, num ápice, voltado
com algumas folhas de repolho acabadas de lavar para que nelas colocássemos
queijo para provar. Sendo delicioso o queijo, quisemos comprar alguns para trazer,
mas não aceitaram o dinheiro, pois, segundo explicaram, aqueles queijos tinham
sido feitos para, naquele dia oferecerem aos primeiros visitantes que se
aventurassem a descer à povoação. E não é que a sorte nos calhou a nós?!
Tão bem nos sentimos naquele lugar que
acabámos por almoçar na povoação, tendo apreciado um bem cuidado prato de vitela que,
por ter sido alimentada com erva fresca do vale, era macia como “manteiga”.
Provámos depois compota de capucho, um fruto verde típico açoriano, a que se
seguiram umas fantásticas barrigas de freira acompanhadas de um odorífico chá
da Goreana. Já tarde - pois ficámos à conversa com os nossos anfitriões, que
nos foram contando numerosas lendas sobre a origem da Lagoa das Sete Cidades, a
maioria delas, como é habitual, envolvendo belas princesas e os seus
apaixonados, mas tendo em comum a existência, ali, de 7 cidades, que foram
engolidas pelas águas, sempre como castigo de algo que correu menos bem em cada
lenda – regressámos a Ponta Delgada fazendo um desvio ao litoral, com o intuito
de lanchar as célebres "cracas", de que tanto ouvira falar, no Continente. Muito
especialmente, do inesquecível sabor do seu “molhinho”!
Entrando no restaurante indicado para o
efeito, apressei-me a pedir as ditas cracas. A primeira surpresa com que deparei
foi o preço: apenas oitenta escudos o quilo! Perante tal “pechincha”, encomendei
de imediato um quilo de "cracas". Mas, surpresa das surpresas, quando o empregado
voltou à mesa, o que vi foi uma bandeja com um montinho de pequenos pedaços de rochas
lá dentro! Mas o que é isto? Perguntei atónita ao simpático empregado, ao que
ele me respondeu:
- Ai nã sabe? As "cracas" são um marisco
minúsculo que vive nos orifícios das rochas. Para saborear o seu excelente molhinho,
tem de colocar a boca nos orifícios dessas rochas e chupar com força o seu
conteúdo. Vai ver o que é bom!
- Realmente a aguinha que sorvi de alguns
daqueles orifícios das pedras era bastante saborosa, diria mesmo que sabia a um
“mar gostoso”. Contudo, isso não impediu que as "cracas" me desiludissem! E, para
que todos provassem, houve que pedir mais uns quilitos de pedras...a oitenta
escudos cada! Em compensação, as grandes lapas grelhadas que se seguiram eram não
só deliciosas, como anormalmente grandes, em relação às habituais no
Continente. Já bem lanchados, regressámos então a casa satisfeitos...e com
vontade de dormir!
Fig. 19 – Lapas grelhadas
Fig. 19 – Lapas grelhadas
No dia seguinte partimos de Ponta Delgada logo pela
manhã, como intuito de visitar o segundo centro mais populacional da Ilha, depois
da sua capital – a cidade da Ribeira Grande – e apreciar um pouco da sua costa
norte, regressando depois pela estrada de acesso à Lagoa do Fogo.
Passada Ribeira Seca, chegámos à
Ribeira Grande, cuja arquitectura basáltica, com especial destaque para os seus
numerosos solares dos séculos XVII e XVIII, é claramente digna de excelente
nota. De tudo que me foi dado ali visitar nesse dia, saliento quatro aspectos
singulares da cidade e arredores. O primeiro prende-se com a belíssima fachada
barroca do século XVIII da Igreja do Espírito Santo. O segundo, com o Jardim do
Paraíso que, rodeando o percurso da ribeira que deu o nome à cidade, exibe
ainda nas margens dos seus canais de pedra, alguns testemunhos dos antigos
moinhos de água, usados inicialmente para moer cereais e, posteriormente,
pastel tintureiro - que tão importante foi para o desenvolvimento económico da
Ilha – sendo que alguns ainda moíam à data da minha visita.
O terceiro aspecto singular da cidade
prende-se com o seu Arcano da Madre Margarida do Apocalipse. Esta religiosa
dedicou cerca de vinte anos da sua vida, mais precisamente entre 1836 e 1856, a executar – com
farinha de arroz e goma-arábica, fazendo recurso complementar a tecidos, vidro
e cartolina – os milhares de figuras que, no seu actual Arcano, representam em
72 núcleos, distribuídos por diferentes planos, numerosas cenas do Antigo e
Novo Testamentos.
Fig. 20 - Cena do Arcano da Ribeira Grande
Fig. 20 - Cena do Arcano da Ribeira Grande
O quarto aspecto singular da região da
Ribeira Grande interliga-se com os seus poços geotérmicos, só possíveis pelas
características muito particulares de certas zonas do subsolo da região. Tais
características só são reunidas porque a Ilha de S. Miguel se localiza, tal
como já referido, na confluência de diferentes falhas das placas tectónicas, sendo
por tal razão o subsolo de algumas das suas sub-regiões dotado de uma
relativamente elevada energia térmica endógena. Decorrendo deste facto, em
1973, uma equipa de geólogos canadianos descobriu um grande reservatório
geotérmico natural com temperaturas superiores a 200ºC (por isso designado como
um reservatório de alta entalpia). A existência desse reservatório veio a
permitir que, em 1980, tivesse arrancado a primeira Central Geotérmica Piloto
do Pico Vermelho, para transformar energia térmica em electricidade. Os
bons resultados nela obtidos vieram a justificar o arranque da nova central,
ainda mais potente que a primeira, que tive a oportunidade de visitar nesse dia
nos arredores da Ribeira Grande.
Após esta interessante e invulgar
visita a uma central energética que, através de adequados processos
tecnológicos, permite transformar o calor do subsolo em energia eléctrica,
reduzindo assim a dependência energética da Ilha e o seu consumo de petróleo,
voltámos à cidade da Ribeira Grande onde almocei um delicioso peixe fresco,
seguido por um perfumado e doce ananás e, finalmente, por uns confeitos da
Ribeira Grande, acompanhados por um licor de maracujá, todos frutos do labor na
Ilha.
Seguimos depois, por Ribeirinha, para a
costa norte da Ilha, onde uma paisagem inesperada me aguardava. Não obstante as
escoadas de lava e as acumulações de cinzas e blocos se encontrarem claramente
talhados pelas ondas, formando altas arribas abruptas e quase contínuas sobre o
oceano, como que emergindo das plataformas rochosas existentes sobre as
arribas, também ali se via uma vegetação variada e bela! A presença de tal
vegetação naquelas plataformas é, realmente, uma prova irrefutável da
excepcionalidade do clima e da riqueza dos solos Micaelenses! Estes últimos, ao
que parece, só são deficientes em cálcio, devido à ausência de rochas
calcárias. É, por esta razão, que os habitantes da Ilha são aconselhados a
tomar adequados suplementos de cálcio, de modo a prevenir uma doença de ossos,
de que antigamente muitos idosos ali sofriam, conhecida pela “doença do machado”.
Fig. 23– Aspecto da Costa Norte
Voltando a passar pela Ribeira Grande, tomámos, seguidamente, a estrada na direcção da almejada Lagoa do Fogo. Do alto da Serra de Água de Pau, foi-me dado avistar a Central Geotérmica, agora de longe e de cima, toda ela coberta por uma grande nuvem de vapor.
Continuando a estrada, passei pela Caldeira Velha com
a sua pequena cascata e a sua tranquila beleza verde até que, após um percurso
de estrada rico em curvas e contracurvas, surgiu subitamente a deslumbrante
visão da Lagoa do Fogo. Pelos complexos recortes desta Lagoa torna-se por
demais evidente que nem a magnífica palete de tons de verde e azul, embelezada
pela luz de um sol ainda alto, consegue esconder o efeito das incríveis forças
vulcânicas que há milhões de anos lhe deram origem.
Lá bem no fundo da cratera, entre as
margens intensamente recortadas da Lagoa, espraiam-se as suas lânguidas águas,
terminadas, aqui e ali, por pequenas penínsulas separadas por minúsculas praias
aparentemente inacessíveis. E ao longe, do lado Sul, entre as cristas dos picos
cobertos por bosques da Reserva Natural, uma estreita faixa do Atlântico parece
espreitar a sua filha Lagoa do Fogo, que nele teve origem há mais de 290 mil
anos.
Assim, depois de um dia maravilhoso,
após ter passado por Remédios e Lagoa, tomámos já tarde alta a estrada da
beira-mar, na costa Sul da Ilha, para regressar a Ponta Delgada de onde, no dia
seguinte, partimos de regresso a Lisboa.
Voltei à Ilha de S. Miguel, em
trabalho, várias vezes e, em cada uma delas, fui descobrindo novos encantos e
prazeres. E se há algo nela que se me vai tornando cada vez mais singular é o
facto de os seus mais variados percursos integrarem uma verdadeira escola sobre
as transformações do nosso Planeta! Eles constituem um autêntico museu de
fenómenos vulcânicos e de materiais expelidos pelos vulcões ao longo de milhões
de anos, bem como das transformações dos mesmos, provocadas quer pelos agentes
climatéricos, quer pelo próprio oceano.
De todos os lugares do Globo que já visitei,
só a Ilha de S. Miguel permite observar em toda a sua pujante beleza diferentes
tipos de cones vulcânicos, bem como as transformações por estes sofridos em
diferentes tubos lávicos. Tais transformações tiveram início com a formação de
uma crosta sólida sobre a escoada de lava fluida de um vulcão em perda de
actividade, seguindo-se a formação de um vazio sob a referida crosta, consequente da regressão do volume da lava. Finalmente, a interrupção da
erupção vulcânica criou grutas ou túneis de lavas (túneis lávicos), que atingem
actualmente quilómetros de extensão e que podem, alguns deles, ser visitados em S. Miguel pelos
eventuais interessados!
Fig. 25 – Esquema de formação de um tubo lávico
(Cortesia da Direcção Regional de Turismo dos Açores)
Mesmo para os menos corajosos que não
se aventurem na visita ao interior dos tubos lávicos, ficam as muitas caldeiras
de abatimento dos cumes dos cones vulcânicos que, com o decorrer dos tempos, e
a acumulação das águas da chuva, se transformaram nas maravilhosas Lagoas e
Lagos de S. Miguel.
Ficam também os
materiais eruptivos, com especial incidência nos basaltos, que têm conduzido ao
excepcional património arquitectónico micaelense.
Ficam ainda
muitos outros materiais expelidos pelos vulcões que, através de uma degradação
milenar pelos agentes atmosféricos, conduziram aos solos, cuja riqueza em
elementos essenciais à vida vegetal permitem que em S. Miguel os fetos e
muitas árvores exóticas atinjam dimensões tais, que cheguei a pensar
encontrar-me em locais pré-históricos. A riqueza do solo, associada ao clima da
Ilha, permite que, a partir de Abril, a mesma se transforme num autêntico jardim
encantado das mais maravilhosas e variadas flores.
Fig. 26 – Algumas flores da Ilha
Fig. 26 – Algumas flores da Ilha
Fica uma energia térmica endógena em alguns locais do subsolo da Ilha, que permite a sua transformação em energia eléctrica, um dos factores do seu desenvolvimento. É a mesma energia, porém com menor intensidade que, nas Furnas, não só permite saborear os tão apreciados cozidos, caldeiradas e outros pitéus das Caldeiras, como tomar banho numa piscina natural de água férrea, onde, quem lá tomou banho, nunca mais esquecerá o quão agradável foi fazê-lo.
Fig. 27 – Cozido preparado nas Furnas
É ainda devido à singular existência de reservatórios rochosos naturais de elevadíssima capacidade de isolamento térmico que, surpreendentemente, é possível no Vale das Furnas, ao lado das caldeiras e fumarolas, brotarem nascentes de águas frescas e cristalinas, cuja qualidade hídrica já granjeou um lugar de destaque na Europa.
É ainda devido à singular existência de reservatórios rochosos naturais de elevadíssima capacidade de isolamento térmico que, surpreendentemente, é possível no Vale das Furnas, ao lado das caldeiras e fumarolas, brotarem nascentes de águas frescas e cristalinas, cuja qualidade hídrica já granjeou um lugar de destaque na Europa.
Uma palavra final sobre o seu artesanato. Não para
falar dos seus bonitos bordados e cerâmicas azuis, ou do seu mobiliário
caseiro, mas sim, e muito especialmente, dos excepcionais quadros e arranjos de
flores totalmente construídos com escamas de peixe, e fruto de uma paciência e
habilidades infinitas, bem como dos originais trabalhos feitos com ossos das
baleias antigamente arpoadas ao largo da Ilha.
A Ilha de S. Miguel, do grupo Oriental do Arquipélago dos
Açores, é, de facto, um local especial e único, no nosso maravilhoso Planeta
Terra!
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